sexta-feira, 19 de julho de 2013

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Seja como for, mestre Salomão - atalhou Albuquerque - a boa verdade é que o tempo vai agora para os embarcadiços das caravelas da Mina, e bem percebeis com qual razão a espada que batalhou em Marrocos e Otranto…»

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O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Tudo mudou! - prosseguiu Albuquerque – Castela seguirá os destinos da grande monarquia que se formou em volta do trono de El-rei Fernando, o Católico. - Ou melhor se poderia dizer da rainha Isabel, que vale bem o melhor dos reis, tal é a grandeza do seu ânimo - observou Francisco. - Melhor o sabeis vós do que eu, que aos dois valorosamente haveis servido - volveu Albuquerque. Seja, porém, como for, é bem claro que também Castela se volta para a aventura dos mares, tomando o caminho que as nossas caravelas abriram, no tempo do senhor infante Henrique. Aprenda a ler cartas de marear quem tiver ânsias de glória troque a espada pela cana do leme como o genovês que ali veio o ano passado alardear as suas prosápias de descobridor das ilhas do Zipango. Vereis que há-de ir atrás dele a cobiça espanhola em busca do oiro e das especiarias do Levante.
Se assim for, quando algum dia os nossos chegarem à Índia, se lá forem, andará já o Oriente enxameado de castelhanos e aragoneses - observou Francisco. - Perdoai, se de algum modo vos contradigo – acudiu o judeu, mas creio bem que tal não sucederá. Cristóvão Colombo prometera encontrar essa Índia de que messer Marco Pólo contara maravilhas no seu livro do Cathaio e do Zipango, e para se não confessar em erro…
 - Que se o foi, como entendo - atalhou Albuquerque – boa culpa cabe também ao sábio Toscanelli, a quem o genovês pedira conselho. Como em tempo lho havia pedido o senhor rei Afonso V, a respeito das terras onde amadurecem as especiarias. Mas nem ao rei de Portugal nem ao aventureiro de Génova podia o sábio florentino dizer outra coisa que não fosse uma suposição colhida em livros de antigos geógrafos. Cristóvão Colombo não quer dar o braço a torcer, e é talvez intento seu realçar a sua aventura no fingimento de haver encontrado as terras do Zipango. - Mas olhai, mestre Salomão Zacuto - redarguiu Albuquerque - olhai que no ano passado ele próprio teve a audácia de o dizer aí por Lisboa, mostrando, como testemunho da sua verdade, os cativos e as coisas que pudera trazer das terras encontradas.
 - Tenho um traslado do livro de messer Marco Pólo; atentamente o hei lido e meditado e, do ensinamento que dele colhi e das falas que tive com o próprio genovês, sondando nele disfarçadamente todos os particulares de sua viagem, vim ao convencimento de que, ou nunca leu o livro do veneziano e só das maravilhas contadas ouviu falar por alto, ou, se bem o conhecia, a todos nos quer embair, fingindo haver achado o remoto Oriente. O mais certo será que nunca o houvesse lido, bem que seja homem de saber. O que ele viu e conta da sua viagem em nada se combina e parece com o que messer Marco Pólo referiu. Outras terras encontrou – concluiu o judeu – novas terras, certamente, de que pilotos portugueses haviam já trazido vaga notícia, tais como um tal Afonso Sanches.
 - E não falta quem diga - acrescentou Albuquerque - que esse tal piloto legara à hora da morte ao apregoado genovês, genro de Bartolomeu Perestrelo, uns certos papéis da sua viagem a umas novas terras das bandas de oeste. - Terras de entranhas de oiro - prosseguiu o judeu - mas não as do Zipango. - Mas lembrai que El-rei teve dúvidas a tal respeito – redarguiu Francisco - e, pelas ter, havia resolvido que uma armada fosse verificar se o descobrimento do genovês ofendia as obrigações do tratado das Alcáçovas, entrando na limitação das paragens que Portugal tem o direito de descobrir. - Assim é, Francisco de Almeida – confirmou o judeu - e por tal sinal vos escolheu Sua Alteza para capitão-mor dessa armada. Mas não se houvesse convencido El-rei de que o genovês não tinha chegado às Índias, e não seriam os rogos do Sumo Pontífice, nem as boas palavras de amizade do enviado de Castela, que do seu propósito lograriam demover o nosso rei João II.
 -Seja como for, mestre Salomão - atalhou Albuquerque - a boa verdade é que o tempo vai agora para os embarcadiços das caravelas da Mina, e bem percebeis com qual razão a espada que batalhou em Marrocos e Otranto se não pode honrar agora a golpear os negros boçais do Manicongo. Quanto à Índia, Deus sabe o que será, se algum dia lá formos. - Está o cometimento em excelentes mãos, e anda-me a dizer o coração que lá hão-de ir os Portugueses, e quem sabe se também vós, meus ilustres fidalgos? - disse o judeu calorosamente, com uns grandes ares proféticos. - Se algum dos dois houver de ir lá - notou Francisco, sorrindo - esse tal será Afonso de Albuquerque, mais entendido do que eu na arte de navegar. - Primeiro se lembrará de vós El-rei, que já vos confiou o mando de uma armada - retorquiu-lhe Albuquerque.
 - E com meu pai e senhor, certo iria eu também, mestre Salomão - disse timidamente o pequeno, corando muito. - Pois certo é que haveis de ir, meu querido menino - respondeu-lhe o judeu carinhosamente. - Tendes ares de profeta, mestre Salomão - volveu-lhe Francisco de Almeida, rindo - O pior é que o descobrimento ainda não está feito, e as naus que hão-de intentá-lo aí as tendes ainda em esqueleto. - Tudo El-rei traz prevenido e disposto. Será mais cedo do que muita gente supõe. Olhai como as coisas da armada se vão aumentando! Vede aí, toucadas de pendões e galhardetes, aquelas donairosas caravelas já abastecidas de artilharia, como até nossos dias se não havia visto em tais navios». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT