quarta-feira, 31 de julho de 2013

Para mim… Poesia. Alexandre O’Neill. «Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim. Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino…»

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O poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis.

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
[…]
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardente
e angustiados.

Ah o medo vai ter tudo
tudo.

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer).

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada poe seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos.

Sim
a ratos.

Poema de Alexandre O’Neill, in ‘Poesias Completas, 1951 / 1986

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