quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

A Armadilha de Dante. Arnaud Delalande. «O que você vai..? “Vexilla regis prodeunt inferni”, Marcello Torretone! Colocou a ponta do primeiro prego num dos pés firmemente amarrados de Marcello»

jdact e wikipedia

Maio de 1756
«(…) O desconhecido acabava de aprisioná-lo contra as tábuas de madeira cuja sombra projectaria em breve uma cruz no piso. Você... Você é Il Diavolo? A Quimera? Por um instante, a forma encapuzada se virou em sua direcção. Marcello tentou, em vão, vislumbrar os traços do rosto mergulhado na escuridão. Então você existe? Mas eu pensei... Uma nova risada. Vexilla regis prodeunt inferni..., murmurou a Quimera. A voz era grave, assustadora. Na verdade, parecia vinda de um túmulo. O quê? Vexilla regis prodeunt inferni. Vamos cuidar de você. Primeiro vou terminar de prendê-lo, depois o suspenderemos aqui mesmo, neste palco de espectáculo. Alegre-se, meu amigo. Você terá, esta noite, representado seu mais importante papel. Então a Quimera pegou um martelo e dois compridos pregos afiados. Os olhos de Marcello se arregalaram de pavor. O que você vai..? Vexilla regis prodeunt inferni, Marcello Torretone! Colocou a ponta do primeiro prego num dos pés firmemente amarrados de Marcello e o braço ergueu-se, o martelo na mão. NãããããããO! Marcello berrou como nunca. Vexilla regis prodeunt inferni. Avançam os estandartes do rei do Inferno. Com a fisionomia grave, Francesco Loredan caminhava com precipitação pelos corredores do palácio ducal. É preciso colocar as mãos nesse homem a qualquer preço. Francesco era um dos nobres habituados à magistratura.
Tendo chegado ao poder em 1752, era doge havia mais de quatro anos. Desde os 25 anos, os jovens aristocratas venezianos eram treinados para servir ao Estado. Como por direito de nascimento, as portas do Grande Conselho se lhes abriam. Francesco fora um deles. Como era hábito em Veneza, aprendera as vicissitudes das funções governamentais em contacto com os anciãos; uma prática tanto mais necessária já que a constituição da República era essencialmente oral. Em geral, os embaixadores levavam consigo os filhos para iniciá-los nos segredos da diplomacia. Alguns jovens nobres, os Barbarini, escolhidos por sorteio, por ocasião da festa de Santa Bárbara, recebiam autorização para assistir ás deliberações do Grande Conselho antes de atingirem a maioridade. Todos os responsáveis pelo Estado privilegiavam, para a prole, um aprendizado fundado, sobretudo, na experiência prática do funcionamento das instituições. Para as dinastias nobres, as carreiras eram traçadas com antecipação: Grande Conselho, Senado, Governo de colónias ou funções públicas na Terra Ferma, embaixadas, Conselho dos Dez, até a função de procurador ou mesmo de doge, primaz da cidade veneziana. Essa cultura política constituía um dos fundamentos do poder na Laguna Veneta, largamente consolidada graças ao talento de seus líderes e à influência de seus relacionamentos, mesmo que as avaliações dos dignitários de Veneza se voltassem por vezes contra a brilhante República, afeita a todos os grandes erros diplomáticos. A aliança dos doges com Florença contra Milão, selada três séculos antes pela Paz de Lodi, havia permitido à Sereníssima contribuir para a liberdade da Itália, mas preservando sua própria independência. No rastro da de Constantinopla, a mais influente entre todas, as grandes embaixadas venezianas tinham-se multiplicado: Paris, Londres, Madrid e Viena. A divisão do Mediterrâneo entre os turcos e as frotas católicas, sinal da erosão de sua superioridade no Levante, havia igualmente permitido a Veneza garantir a sua perenidade. A República não havia inventado a política, mas como rainha dos mares, mediadora das culturas e virtuose da aparência, lhe conseguira novos títulos de nobreza que a equiparavam a outros emblemas italianos, como Maquiavel, do Príncipe, e os Médicis florentinos.
O pragmatismo, o talento para as actividades públicas, a habilidade nos negócios, tanto comerciais quanto jurídicos, diplomáticos e financeiros faziam de Francesco o digno herdeiro da alma aristocrática veneziana. E enquanto caminhava na direcção da Sala del Collegio, com a carta na mão, dizia a si mesmo, mais uma vez, que ser doge de Veneza não era uma função sem sobressaltos. Eventualmente, um guarda do palácio curvava-se à sua frente, levantando a sua alabarda antes de retomar a sua postura erecta e afectada. Os Dez têm razão, se dizia Loredan. É preciso agir com rapidez.
Desde o século XII, os atributos do doge não cessaram de ser reforçados: a investidura pelo estandarte de San Marcos, os laudes oriundos dos costumes carolíngios, o dossel e a púrpura de Bizâncio e a coroa encimando o chapéu ducal eram provas. No entanto, o povo de Veneza sempre velou para que o primaz na cidade não pudesse arrogar a si todo o poder. Sua autoridade, desde o início restringida pela pessoa jurídica da comuna de Veneza, havia sido rapidamente limitada pelo grupo das elites dirigentes da cidade. Ainda hoje, as grandes famílias, no início responsáveis pela expansão da península, preservavam a própria supremacia nas tomadas de decisões importantes; e se Veneza evitava toda a espécie de absolutismo monárquico, o Estado marcava com vigor a fronteira entre o suposto poder do povo, que não tivera uma duração maior que a de um sonho, e a preponderância das dinastias as quais a cidade devia a sua supremacia. Como todos os venezianos, Francesco gostaria de ter nascido na Idade de Ouro, do progresso de Veneza e suas colónias: poderia ter sido, senão o único mestre a bordo, pelo menos um dos arquitectos dessa vasta empreitada de conquista. Com certeza obtinha uma imensa satisfação do esplendor do título e do cerimonial incessante que rodeava sua pessoa. Mas, por vezes, se sentia prisioneiro da pompa, rex in purpura in urbe captivus, rei vestido de púrpura, prisioneiro na própria cidade. Quando fora proclamado doge na basílica vizinha, se apresentara diante da multidão jubilosa na praça San Marco, antes de receber o chapéu ducal no topo da escadaria dos Gigantes. Entretanto, imediatamente após a nomeação, fora forçado a prestar o juramento de jamais exceder os direitos acordados pelo promissio ducalis, lida todo ano em voz alta para lembrá-lo da natureza exacta de suas atribuições». In Arnaud Delalande, A Armadilha de Dante, Editora Record 2009, ISBN 978-850-107-907-7.

Cortesia de ERecord/JDACT