quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A Última Tribo. Eliette Abécassis. «De tanto estudar as letras, tornara-me uma letra, o Vau. O Vau conversivo, aquele que faz do futuro um passado e do passado um futuro»

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«(…) Sou Ary, o escriba, mas deixei de o ser. Tinha abandonado tudo e deixara de procurar a sabedoria. Endossara as roupas citadinas e era como vós. Já não conhecia os tormentos e os transes, os pavores daquele que busca Deus. Deus! Como estava longe da religião que invadira as menores fibras do meu ser! Trazia os Essénios na pele, as letras gravadas no meu rosto, o nome de Deus tatuado no meu coração. Era Ary, o Messias, mas deixara tudo para trás, até a minha própria essência deixara longe de mim, e sentia-me leve, tão leve... De tanto estudar as letras, tornara-me uma letra, o Vau. O Vau conversivo, aquele que faz do futuro um passado e do passado um futuro. Renegara a religião, tornara-me praticante da apostasia e posso dizer-vos que comia o que se me apresentava. Caminhava livre e satisfeito, finalmente anónimo, sem o peso terrível do eleito, sem esse privilégio que é um fardo. E dizia para comigo: a mim, o mundo, a mim, a vida! E escrevi: a mim, o amor. Tenho um utensílio pontiagudo e, com a tinta, desenho as colunas e as linhas. Escrevo com a pluma e a resina, utilizo óleo e água, concluo o meu trabalho em pequenas peças de couro; as letras abordam as linhas como dançarinas microscópicas, valsando em conjunto, ligando-se e dobrando-se uma e outra vez, curvando-se em grandes arabescos para vos saudar, para vos desejar as boas-vindas, para vos levar para algum lado, para longe, neste mundo, e para vos revelar o seu mistério, assim seja. Na tua boca pus as palavras, na palma da minha mão te acolhi.

Na falésia existem grutas, umas feitas pela mão do homem, outras naturais. Nas escavações que aí se efectuaram, em 1947, foram encontrados rolos e fragmentos que representam documentos judeus essenciais, dezenas de milhar de fragmentos, uma verdadeira livraria que data do tempo de Jesus, a maior descoberta arqueológica do século XX. Os manuscritos encontrados nesse ano estavam habilmente conservados em jarros, envoltos em panos, ao abrigo da humidade. Os Essénios escreveram esses rolos: é uma seita judia, oriunda dos sacerdotes do Templo, que se retirara para o Mar Morto esperando pelo fim dos tempos, purificando-se, banhando-se na água pura e clara para se prepararem para o seu advento. Quando chegasse esse tempo, os maus seriam destruídos e os bons seriam vitoriosos. Os Essénios viam-se a si próprios como os Filhos da Luz que combatiam os Filhos das Trevas. Desconfiavam da mulher sedutora, cujo coração é uma serpente, cujas roupas são enfeites e que desviavam o homem justo do seu caminho: Lilith, segundo o mito bíblico. Um demónio que voa de noite para perverter os homens. O meu destino está ligado ao dos manuscritos. Contudo, não era predestinado. Na minha juventude fui soldado: cumpri o serviço militar na terra de Israel e combati noites inteiras para defender o meu país. A minha família não era religiosa: o meu pai, paleógrafo, consagrara a sua vida ao estudo dos textos antigos, mas de um ponto de vista científico, pelo menos era o que eu pensava. Quanto a mim, depois do exército encontrei a religião: ela acolheu-me numa manhã de Primavera, graças ao encontro com um rabino no quarteirão de Mea Shearim, em Jerusalém. Era o Rabi: foi ele quem me ensinou os preceitos da Tora, as discussões do Talmude e até certos mistérios da Cabala que só os iniciados conhecem. Tornou-se o meu mestre, o meu mentor, e eu tornei-me o seu discípulo. Graças a ele, descobri um mundo diferente daquele em que vivia, um mundo habitado por uma alma, um mundo com o traje do esplendor e eu próprio vesti a sobrecasaca escura dos estudantes da Lei.
Dediquei-me ao estudo de todo o coração, procurei a sabedoria com toda a minha alma e com todos os meus poderes, e encontrei-a, pois li muito, aprendi muito e, nas danças misteriosas dos hassidim ao dealbar da madrugada descobri tanta graça e tanta beleza que não mais os quis deixar. Então abri asas e afastei-me da minha família, ateia e julgava eu, despreocupada, longínqua. Nunca mais comi em casa da minha mãe pois a sua cozinha não era casher, e vi o meu pai, que tanto amava, de longe em longe, até ao momento em que, sem querer, me vi implicado numa investigação policial. Deste modo, eu, Ary Cohen, o oficial, o estudante, o escriba, tornei-me detective». In Eliette Abécassis, A Última Tribo, 2004, tradução de Carlos Oliveira, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, Lisboa, 2005, ISBN 972-382-763-8.

Cortesia ELBrasil/JDACT