sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Um Comércio Respeitável. Philippa Gregory. «O capitão Lisle abriu os mapas à sua frente e traçou a rota até à costa de África, no ponto onde ficava a Guiné. O criado já lhe preparara uma camisa lavada e água para se lavar»

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«Mehuru acordou ao nascer do dia sentindo o ar fresco no seu corpo estendido. Abriu os olhos na penumbra e inspirou profundamente, como se a leve brisa pudesse trazer consigo um aroma desconhecido. Na sua mente ainda permaneciam resquícios do sonho que tivera, uma visão perturbadora de um navio a levantar âncora entre sombras e a navegar lentamente através de um desfiladeiro profundo e rochoso. Levantou-se da tarimba onde dormia, embrulhou-se num lençol e foi calmamente até à porta. A cidade de Oyo estava em silêncio. Olhou para a rua; não se via qualquer luz. Só nas densas paredes do palácio conseguia ver uma luz a deslocar-se à medida que um criado percorria as diversas divisões e o brilho da tocha que empunhava ia iluminando cada uma das janelas por onde passava. Não havia nada a temer, não havia nada a incomodá-lo, mas, apesar disso, estava alerta e à escuta, como se o piar das corujas que andavam à caça ou os pequenos guinchos dos morcegos pendurados à volta das torres de pedra do palácio pudessem estar a avisá-lo de qualquer coisa. Sentiu um ligeiro arrepio e afastou-se da porta. O sonho tinha sido muito nítido, apenas a imagem de uma corda a cair de um cais de pedra e a serpentear pela água até junto à proa de um navio e a subir pela parte lateral como se estivessem a puxá-la e, depois, o navio a afastar-se de terra, silenciosamente. Numa imagem assim não devia haver nada a temer, mas o sonho fora obscurecido por uma sensação de ameaça, da qual Mehuru ainda não conseguira libertar-se. Em voz baixa, chamou o escravo Siko, que dormia aos pés da sua cama. Faz chá, ordenou-lhe secamente quando o rapaz apareceu, ainda a esfregar os olhos.
Estamos a meio da noite, protestou o rapaz, mas calou-se ao ver a expressão de Mehuru. Assim farei, meu senhor. Mehuru esperou junto à porta que o rapaz lhe depositasse na mão a pequena taça de bronze com chá de hortelã. O aroma intenso que dele emanava reconfortou-o. No sonho havia um cheiro terrível, um cheiro a morte e doença, como se o navio que partira por entre a escuridão, sem deixar rasto na água gordurosa, transportasse carne putrefacta. Aquele sonho devia ter um significado qualquer. Mehuru fora preparado para ser obalawa, sacerdote, e transformara-se num dos mais importantes do país. Devia saber decifrar os seus próprios sonhos. O céu clareava sobre os telhados da cidade, brilhando como uma pérola envolta em nuvens finas como musselina. Enquanto as observava, foram-se dissipando, e a cor do céu acentuou-se lentamente num tom acinzentado, passando depois a um azul-pálido enublado. Na linha do horizonte, a oriente, o sol despontou, como um disco branco a arder. Mehuru sacudiu a cabeça para se libertar do sonho. Tinha pela frente um dia muito ocupado: uma reunião no palácio e a oportunidade de mostrar que era um homem decidido e ambicioso. Esqueceu o sonho. Se voltasse a lembrar-se dele, tentaria então interpretá-lo. O dia aproximava-se em tons brilhantes de creme e branco, promissor. Mehuru não queria que um dia assim fosse ensombrado pela silhueta obscura de um navio visto em sonhos. Voltou para dentro e mandou Siko aquecer água para se lavar e preparar as suas melhores vestes. No porto de Bristol, onde a água salgada se encontra com a água doce no canal de Bristol, o navio negreiro Daisy dispensou o piloto que o guiara pela estreita e traiçoeira garganta do Avon e separou-se das barcaças que o haviam rebocado em segurança até ao mar. Içou as velas quando o sol nasceu e se levantou um vento ligeiro vindo de oeste. O capitão Lisle abriu os mapas à sua frente e traçou a rota até à costa de África, no ponto onde ficava a Guiné. O criado já lhe preparara uma camisa lavada e água para se lavar. Tornou a deitá-la jarro de porcelana, que segurou cuidadosamente com as mãos calejadas e sujas.
Josiah espalhou um pouco de areia sobre a carta com a mão firme e soprou-a com cuidado. Levantou-se da cadeira, aproximou-se da janela alta e olhou para baixo, vendo os desembarcadouros e a água escura da doca de Redclift. A maré estava a subir e os navios balançavam suavemente junto ao paredão; ouvia-se um som constante vindo do cordame que ressoava sob o vento suave, mas gélido. Havia um monte de lixo e de fardos abandonados no molhe vazio da Coles e algumas cordas de amarração ainda enroladas no cabeço. Josiah tinha visto o seu navio Daisy desfraldar as velas na maré da manhã. Aquela hora já devia ter chegado ao alto-mar, numa viagem que levava a sua esperança. Não podia fazer nada a não ser esperar. Esperar por notícias do Daisy e pela chegada do seu segundo navio, o Lily, que atravessava lentamente os mares, vindo das Índias Ocidentais com um carregamento de açúcar e rum. O seu terceiro navio, o Rose, devia estar a descarregar em África. Josiah não era, por natureza, um homem paciente, mas fazer comércio apenas com três pequenos navios em seu nome ensinara-o a ser firme nos propósitos e a ter uma paciência infinita. Cada uma das viagens demorava mais de um ano e, quando um navio partia da doca, podia não voltar a ter notícias dele até regressar. Não podia fazer nada para apressar a viagem do Daisy nem para ficar mais rico. Depois de ter aprovisionado o Daisy e de o ter visto içar as velas, não havia nada a fazer a não ser esperar e olhar para o lixo espalhado na água oleosa do porto. O cheiro peculiar dos seus navios, o do suor causado pelo medo e pelas doenças, ao qual se sobrepunha o intenso odor a álcool e a açúcar, pairava sobre a doca como uma neblina infectada.
Até na roupa de Josiah esse cheiro se sentia ao de leve, impregnando-lhe igualmente a peruca e a pele. Não se apercebera na entrevista de sexta-feira com miss Scott de que ela levara várias vezes o lenço à cara para conseguir suportar o cheiro acre do entreposto que dominava por completo os pequenos aposentos por cima do armazém. Aquele odor tornava-se mais forte quando havia um navio na doca. Olhou para a carta que tinha na mão. Estava escrita com a mesma honestidade e simplicidade com que um homem de negócios escreve quando quer que as suas ordens sejam compreendidas e obedecidas. Nunca tinha aprendido o palavreado aristocrata. Olhou para a carta com um ar crítico. Se ela a mostrasse a lord Scott, talvez ele a lesse com desdém pelo seu tom directo e claro. Estaria demasiado humilde, ou seria a referência à casa de Queens Square, que afinal ainda não tinha comprado, demasiado pretensiosa?» In Philippa Gregory, Um Comércio Respeitável, 1995, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-430-3.

Cortesia de PEditora/JDACT