sábado, 14 de janeiro de 2017

O Azul Imperfeito. Maria Gabriela Llansol. «Quem está não é ser conhecido, nem homem, nem animal, nem palavra, nem planta, nem ser que se exprima. É deus mortal…»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Este fragmento aparece, em parte, em Um Falcão no Punho, Lisboa, Relógio D’Água; a partir de agora, todas as referências a esta obra remetem para esta edição), com data de 31 de Dezembro de 1982; a mesma figura, Florbela, terá nesse livro o nome de Infausta e surgirá junto de Aossê. Um Falcão no Punho é o primeiro livro publicado (1985) por M.G. Llansol onde a figura de Pessoa/Aossê é significativa; praticamente metade deste primeiro Diário é lhe dedicado. Este fragmento de 18 de Dezembro de 1976 foi já incluído, na sua totalidade, em Uma Data em cada Mão. Livro de Horas I, surge aqui por ser o primeiro momento correspondente à figura de Florbela / Infausta. Ver ainda a gestação do nome de Infausta em Dezembro de 1982 e Janeiro de 1983».

18 de Dezembro de 1976
«À noite. Vejo avançar uma rapariga de saias compridas e de cintura estreita, a quem chamarei Florbela. Caminha por uma estrada incorruptível, ladeada de laranjeiras da altura de sicómoros. Uma luz de fundo a acompanha, a antecede na sua passagem, que deixa os que vêm às portas estupefactos. No rosto tem uma máscara, e o corpo articulado de madeira parece ser destinado ao lançamento nas chamas. Dentro de suas pupilas voam pombas que se afastam subindo para um céu com nuvens esplendorosamente brancas. É Verão, ou uma estação semelhante, desconhecida destes habitantes, mas não das pombas. Na curva do caminho está plantada uma árvore, e as pombas dentro dos olhos circulam e afastam‑se do pensamento em direcção às folhas. O sicómoro cai inteiro, a queda separa‑lhe o tronco dos ramos. Os  ramos incendeiam‑se, recolhem os verdes na chama, o fogo não tem fumo. Florbela aproxima‑se e sobe pelo tronco como por uma escada suspensa do alto deitado; lê infinitamente durante dias e dias enviando mensagens por pombos-correio. Consumido o fogo, desceu para o outro lado do caminho, eixo invisível da rotação que avançava singularmente. A sua obra abrangia toda a espécie de trabalhos preparatórios.

19 de Janeiro de 1977
«Fragmento incluído, parcialmente e com diferenças significativas, em Um Falcão no Punho, com data de 26 de Novembro de 1982, onde já se refere a figura de Aossê. O fragmento encontra‑se, na sua totalidade, em Uma Data em cada Mão. Livro de Horas I,
aqui retomado por ser o primeiro momento que anuncia a figura de Aossê, e também por incluir elementos que serão retomados várias vezes, associados ao falcão: a neve e a chama da vela»

«Sempre escrevendo, sempre caminhando e divagando, está alguém para entrar. Repleto de inocência, me olha sem me ver, e nem pés estão no seu caminho. Frágeis obstáculos sobem na claridade da vela, que ilumina uma voz que recita, está a seu lado com reflexão e medo. Quem está não é ser conhecido, nem homem, nem animal, nem palavra, nem planta, nem ser que se exprima. É deus mortal e desconhecido como eu, em silêncio me pede que o encontre e lhe faça companhia na espera e no medo. Mas este medo é alegre e viaja, rodeado de areia encontra o deserto, precipita‑se nele e procura o meu mundo até à água. Uma toalha de espírito reúne as mil areias do deserto, e canto no azimute da vela, onde este ser repousa, sem sono nem indolência, sorrindo de amor abrupto e doce. Quem ele é me ama, e não está habituado à presença humana, se não for a de homem que cheire a besta num campo de neve e terra. Quem ele é se submete a este quarto, e trespassa o espaço na sua pequenez de pena». In Maria Gabriela Llansol, O Azul Imperfeito, 1985, Assírio & Alvim, 2015, ISBN 978-972-371-850-8.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT