terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A Senhora. Catherine Clément. «Estavam enganados; o terrível ano de 1506 viu os nossos primeiros mártires. Minha velha ama tivera tanto medo que era incapaz de contar o que vira; mas ao cair da noite, se a claridade de um simples incêndio iluminava a cidade…»

jdact e wikipedia

1510-1536. a menina da maçã vermelha
«(…) Depois, dez anos mais tarde, quando caiu o pequeno e fraco rei Boabdil, último soberano de Granada, assinaram um édito de expulsão dos judeus da Espanha. O dia 31 de Março de 1492 foi um dia de luto para o povo judeu e assistiu ao começo de novo êxodo. Deram quatro meses aos nossos antepassados para deixar tudo; eles partiram em plena canícula, no mês de Agosto, pelas estradas calcinadas, e levaram apenas as Toras. Diz-se que, para os encorajar naquela marcha esgotante, se cantava e que as crianças tocavam tambores; houve mortes, houve nascimentos; uns foram até ao mar, ao sul, e alguns embarcaram; outros foram para Portugal. Foi o caso da nossa família, que se instalou na capital. Se os judeus eram pobres, pagavam cada um oito cruzados à chegada e obtinham oito meses de tranquilidade; se eram ricos, à razão de cem cruzados por pessoa, podiam estabelecer-se em Portugal. Os Nasi tinham dinheiro; permaneceram, mudaram de nome e acreditaram estar salvos. Era não contar com o obstinado fervor de Isabel, a Católica, que deu sua filha Isabel a Manuel I de Portugal; quatro anos depois do édito espanhol, era a vez do rei Manuel I obter do papado o direito a expulsar os seus judeus como os soberanos da Espanha. Foi o que em breve aconteceu. Interditados, os judeus de Portugal puderam apenas escolher entre a fuga e a conversão. Alguns decidiram partir; outros, com o coração cheio de raiva, aceitaram o baptismo; outros ainda foram arrastados à força para as igrejas. Por fim, vinte mil dos nossos irmãos foram reunidos no cais do porto de Lisboa; por ordem do rei, não lhes foi dado de comer nem de beber para os obrigar a converterem-se. Os que resistissem teriam, se mantivessem a sua posição, o direito de partir. Mas o soberano não devia ter as ideias claras; a história tomou outro rumo. Esse orgulhoso rei usava um título tão longo como os do Padixá que reina no Império Otomano. Fazia-se chamar Senhor da Conquista, da Navegação e do Comércio da Etiópia, da Arábia, da Pérsia e da Índia. Era a época em que os portugueses iam conquistar tesouros longínquos; o desejo do ouro e das especiarias ardia nos reis, e as naus partiam à procura das índias. Era lá que se encontrava a verdadeira maravilha, o verdadeiro objecto de sua cobiça. Manuel I imaginava-se conquistando o mundo. Não deixava de ter razão: os navegadores portugueses mostravam-se os melhores do seu tempo, como testemunhava o lendário cognome do antepassado real, Henrique, o Navegador (???). O Senhor das Conquistas hesitou: com os judeus partiria o dinheiro. Entretanto deixou que alguns excessos fossem cometidos no cais. Depois teve uma súbita inspiração. Quando chegou o momento da partida dos exilados, o rei Manuel mandou baptizar à força, com grandes baldes de água benta, os que iam embarcar. Eu nada disso vi, porque corria o ano de 1496, mas contaram-me a cena tantas vezes que a imagino perfeitamente. No cais ventoso de Lisboa, os nossos judeus cheios de fome, com os braços pejados de filhos, foram subitamente aspergidos de água suja e santa enquanto um padre de vestimenta dourada traçava sobre eles, mas de longe, o sinal da cruz... Devidamente molhados, ficavam obrigatoriamente fazendo parte do povo dos convertidos, a quem os inquisidores, esses arrivistas da Igreja, tinham chamado cristãos-novos.
O rei Manuel, convencido pelos seus navegadores a não deixar escapar o dinheiro dos bancos judeus, de que eles tinham tanta precisão, proclamou cristãos todos os judeus de Portugal. E estes resignaram-se, ajuizadamente, a mudar os seus próprios nomes para nomes bem católicos. Era apenas o começo das perseguições; os nossos antepassados não percebiam ainda a sorte que lhes estava reservada e continuavam a ter esperança na clemência dos Reis Católicos. Estavam enganados; o terrível ano de 1506 viu os nossos primeiros mártires. Minha velha ama tivera tanto medo que era incapaz de contar o que vira; mas ao cair da noite, se a claridade de um simples incêndio iluminava a cidade, fechava as portas e escondia-se num canto escuro, apertando-me nos braços. Às vezes, sem querer, articulava palavras soltas. Mais tarde eu soube. Portugal vira chegar primeiro as hordas miseráveis de judeus da Espanha com os filhos. Em seguida houvera uma seca horrível; depois declarara-se a peste. As pessoas morriam nas ruas, como aqui, quando estão empestadas, com a boca encarquilhada e o corpo negro; os portugueses começaram a murmurar contra aqueles imigrantes que lhes traziam desgraças. Mas a peste, a seca e o fogo, os mortos nas ruas, não era ainda o pior. Minha ama gritava de pavor quando em sonhos lhe vinha a lembrança do massacre de Lisboa, alguns meses depois da epidemia. Num fim de tarde a igreja dos dominicanos foi iluminada por um clarão vermelho. A imagem da Virgem, a afável Madona de olhos erguidos para o céu, aureolada de chamas imateriais, exigia o sangue dos judeus: era o que proclamavam os frades. Toda a noite a Virgem flamejou. O dia mal começava a nascer quando três padres ascéticos, os rostos cobertos de cinzas, saíram da Igreja e se puseram a correr pelas ruas, em altos brados, brandindo o crucifixo. Ainda me lembro do que gritavam: piedade, piedade, acorrei em auxílio de Cristo e da religião cristã! Vinde connosco os que quiserem combater os judeus e dar-lhes a morte!». In Catherine Clément, A Senhora, Edições ASA, 1994, ISBN 978-972-411-371-5.

Cortesia de EASA/JDACT