segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Rei. Dama. Valete. Vladimir Nabokov. «A dama usava roupa negra e minúsculo chapéu também negro, com pequenina gaivota de brilhantes. Seu semblante era sério, os olhos frios, leve penugem, que era o sinal de paixão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O que era pior, as velhas ignoravam o vizinho horrível e mordiam os sanduíches, chupando partes penugentas de laranja, enrolando as cascas em pedaços de papel e enfiando-as com graça por baixo do assento. Mas quando o homem baixou a revista e, sem descalçar as luvas, começou a comer um pão com queijo, lançando olhares provocadores em volta, Franz não aguentou mais. Levantou-se depressa, como um mártir ergueu o rosto pálido, soltou e puxou para baixo sua mala humilde, apanhou a capa de chuva e chapéu e, batendo desastradamente com a mala na maçaneta da porta, refugiou-se no corredor. Aquela carruagem fora ligada ao comboio expresso em estação recente, e o ar ali dentro continuava fresco. Teve de imediato uma sensação de alívio, mas a tontura não passara de todo. Uma muralha de bétulas passava em desfile pela janela, em sequência salpicada de sol e sombras. Começou experimentalmente a percorrer o corredor, agarrando-se em maçanetas e nas coisas e olhando para o interior dos compartimentos. Só um tinha lugar vago; hesitou e prosseguiu, desvencilhando-se da imagem de duas crianças com as faces cheias de massa e gordura e mãos enegrecidas de poeira, os ombros erguidos na expectativa de uma pancada que a mãe lhes desferia na nuca, enquanto não paravam de deslizar e sair do assento para brincarem, naquele chão indizível, aos pés dos passageiros. Franz chegou ao extremo do vagão e estacou, acometido por pensamento extraordinário. Tal pensamento era tão doce, audacioso e animador que teve de tirar os óculos e limpá-los. Não, não posso, não há jeito, disse baixinho mas já compreendendo que não venceria a tentação. E depois, examinando o laço da gravata com o polegar e indicador, atravessou em irrupção de ruído as plataformas agitantes entre os vagões e, com estranha sensação no estômago, passou para o vagão seguinte. Tratava-se de um vagão schnellzug de segunda classe e para Franz a segunda classe era algo muitíssimo atraente, um tanto pecaminoso até, cheirando a extravagância apimentada como um gole de licor branco e grosso, ou aquela toranja imensa que se parecia a um creme amarelo e que certa vez comprara, no caminho para a escola. Não seria capaz de sonhar sobre a primeira classe, em absoluto, isso era para diplomatas, generais e atrizes, criaturas quase fora deste mundo! A segunda, no entanto..., a segunda... Se conseguisse ter coragem para tanto. Diziam que seu finado pai (tabelião andrajoso) em certa ocasião, fazia muito tempo, antes da guerra, viajara de segunda classe. Franz, todavia, não conseguia decidir-se. Estacou no início do corredor, ao lado do letreiro que relacionava os pertences do vagão e este já não era uma floresta-cerca a olhar, porém imensos prados deslizando majestosamente por ali e, à distância, em paralelo aos trilhos, seguia uma estrada de rodagem, e nela um automóvel liliputiano em velocidade faiscante. O chefe do trem, que fazia a ronda, tirou-o da dificuldade. Franz pagou o suplemento que promovia sua passagem a escalão superior. Um túnel curto ensurdeceu-o com sua escuridão reverberante e logo a luz voltou, mas o chefe de trem desaparecera. O compartimento em que Franz entrou, com mesura silenciosa e sem resposta, era ocupado por apenas duas pessoas, uma bela senhora de olhar brilhante e um homem de meia-idade, de bigode escuro e aparado. Franz pendurou a capa de chuva e sentou-se com cautela. O assento era muito macio, e havia uma projecção semicircular muito cómoda, na altura das têmporas, separando um assento do outro; as fotografias nas paredes mostravam-se tão românticas, um rebanho de ovelhas, a cruz sobre uma rocha, uma cascata. Devagar ele estendeu as pernas compridas, sem pressa tirou do bolso o jornal dobrado que ali guardara. Mas não pôde ler. Empolgado por tanto luxo limitou-se a segurar o jornal aberto diante de si e por trás dele examinou os companheiros de viagem. Oh, era gente encantadora. A dama usava roupa negra e minúsculo chapéu também negro, com pequenina gaivota de brilhantes. Seu semblante era sério, os olhos frios, leve penugem, que era o sinal de paixão, brilhava acima do lábio superior, um vislumbre de sol destacava-lhe a tessitura cremosa do pescoço com duas linhas delicadas, como se traçado com uma unha, um acima do outro: aquilo também era o presságio de todas as espécies de maravilhas, ao que informara um de seus colegas de escola, perito dos mais precoces. O homem devia ser estrangeiro, a avaliar pelo colarinho macio e roupa enxadrezada. Franz, no entanto, se enganara. Tenho sede, disse o homem, com sotaque berlinense. Uma pena que não haja frutas. Aqueles morangos estavam declaradamente aflitos para serem provados.  A culpa é sua, retrucou a dama, com desagrado na voz e aduzindo pouco depois: ainda não me conformo..., foi uma coisa das mais tolas, aquela. Dreyer ergueu os olhos para o céu improvisado e não respondeu. A culpa é sua, repetiu ela e puxou de modo automático a saia pregueada, observando automaticamente que o rapaz desajeitado e de óculos que aparecera ao canto da porta parecia fascinado por suas pernas sedosas. De qualquer modo, prosseguiu, não vale a pena discutir. Dreyer sabia que seu silêncio irritava Martha, e irritava de modo indizível. Havia um brilho maroto em seus olhos, e as dobras macias em volta dos lábios ondulavam, porque fazia uma bala de hortelã rolar dentro da boca. O incidente que irritara a esposa, na verdade, fora dos mais tolos. Haviam passado o mês de Agosto e metade de Setembro no Tirol e agora, de volta para casa, ele parara por alguns dias para fazer negócios naquela cidadezinha singular, e ali visitara sua prima Lina, com quem dançara quando jovem, cerca de vinte e cinco anos atrás. A esposa se recusara terminantemente a acompanhá-lo. Lina, criatura agora roliça e de dentes postiços, mas tão loquaz e afável quanto antes, dissera que os anos o haviam marcado, mas que podia ter sido pior; servira-lhe café excelente, falara-lhe de seus filhos, deplorara não estarem em casa, indagara sobre Martha (a quem não conhecia) e os negócios dele (sobre os quais achava-se bem informada); e depois, após uma pausa caridosa, perguntara se ele podia dar-lhe alguns conselhos...» In Vladimir Nabokov, Rei. Dama. Valete, 1928, Relógio D’Água, 2012, ISBN 978-989-641-314-9.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT