quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A Terra Toda. José Manuel Saraiva. «Vá lá, e esforce-se um bocadinho para ganhar um pouco mais de ânimo, de tranquilidade emocional; tente relativizar os problemas que o trouxeram cá»

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«(…) Ora, foi mais ou menos por essa altura, conforme constatei mais tarde, quando enfim acertei datas e juntei as peças do puzzle, que a Sara me começou a trair, isto é, a trair a nossa relação. E digo trair a relação, porque entendo, à semelhança de muitas pessoas, e para usar mais um lugar-comum, que nas horas e circunstâncias em que somos desleais com os outros, também o somos com nós próprios. Não está de acordo? Desculpe, mas já reparei que olhou duas vezes para o relógio, o que quer dizer que está na hora de acabarmos a sessão, não é?... Mas deixe-me então dizer só mais uma coisa, talvez um bocado estúpida; uma daquelas coisas que a generalidade dos homens atraiçoados provavelmente lhe costuma confidenciar, como insólito desabafo: a Sara traiu-me com uma das criaturas mais frívolas e mesquinhas que conheci na vida. E era homossexual, percebe? Ou melhor: não era completamente assumido, mas tendencialmente militante. Não que eu tenha nada contra os homossexuais, mas achei isso uma ironia fantástica... Se conheci a criatura? Sim, conheci-a mais tarde num encontro acidental, já muito depois da minha relação com a Sara ter acabado. Mas desse encontro prefiro não falar, porque a verdade é que isso é irrelevante para o que aqui me trouxe. Haverá outras coisas que, embora tenham ocorrido há muitos anos, talvez possam ser mais interessantes para a doutora fazer a avaliação do meu caso, na sua totalidade. E dessas eu gostaria de lhe falar. Claro, Rafael, podemos vir a falar disso e de muito mais; do que quiser e se quiser. Em relação ao que, entretanto, me contou, percebe-se claramente que houve um tempo em que criou expectativas demasiado altas, que falharam. E quando assim acontece as situações complicam-se. E é por isso que agora se sente tão triste, tão angustiado e com a auto-estima muito em baixo. Mas se de facto estiver disposto a prosseguir o tratamento, e eu acho que precisa dele, agradeço-lhe então que passe pela recepcionista para marcar uma nova consulta para a semana. Para já não vou medicá-lo. Preciso primeiro de ter mais dados; de dados concretos que me levem a avaliar melhor o seu caso em toda a dimensão. Muito bem... Vá lá, e esforce-se um bocadinho para ganhar um pouco mais de ânimo, de tranquilidade emocional; tente relativizar os problemas que o trouxeram cá, eu sei que isso é difícil, mas veja se consegue ocupar o seu tempo da melhor maneira possível. Ocupe-o sobretudo com coisas de que goste ou valham a pena para si. Obrigado, doutora. De nada, Rafael. Até para a semana. Até para a semana.
Já na rua, Rafael teve a sensação de que saíra do consultório em pior estado do que aquele em que lá havia entrado. O facto de a psiquiatra se ter limitado a ouvir com aparente frieza o seu testemunho deixou-o profundamente inquieto. Ele já devia saber que em nenhuma circunstância os psiquiatras fazem juízos de intenção nos processos de terapia, que nunca dão conselhos tendenciosos, e, no entanto, acreditara, como se de uma ilusão infantil se tratasse, que a médica a quem recorrera por indicação de um amigo o ajudaria a encontrar, logo na primeira sessão, um novo sentido para a sua conturbada existência. Só que isso não se verificara. Vagueando pelas ruas da cidade, cansado, sofrido, Rafael tentava, a custo, ordenar ideias, recordar-se de tudo o que havia contado à psiquiatra, mas por muito esforço que fizesse não conseguia. Apenas se lembrava de uma ou outra coisa dita sob forma avulsa, descontextualizada, certamente sem nenhum interesse para uma boa avaliação do seu estado. Mais do que nunca, sentia-se profundamente infeliz, sem rumo nem vontade, devastado como um soldado perdido num campo de batalha. Sobretudo porque em vez de se ter centrado nas questões fundamentais, que com tanta cautela havia preparado nos dias antecedentes, se escudara em banalidades, juízos de valor e preconceitos disparatados, acabando assim por cair num discurso errático e nada objectivo.
E disso tinha agora plena consciência. A mesma que o levava a considerar uma inutilidade absoluta, talvez até uma perfeita estupidez, a confidência que fizera à médica sobre as tendências homossexuais do homem com quem Sara o traíra. Podia ter dito que ele era uma personagem insignificante, desprezível, intelectualmente menor, e por aí se ficar. Se o tivesse feito, a psiquiatra teria compreendido logo, quer por experiência profissional, quer por sensibilidade feminina, que um juízo desses não significava mais do que um vago insulto, uma acusação débil, um argumento desajustado. Mas não. O que Rafael pretendeu foi ir tão longe quanto possível na ofensa e no propósito; magoar onde mais dói num homem culturalmente machista, tenha ou não tendências homossexuais: o seu espaço íntimo e discreto. O que ele quis, enfim, foi depreciar, ultrajar e reduzir a nada a criatura que mais odiava no mundo». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.

Cortesia de PEditora/JDACT