sábado, 7 de janeiro de 2017

O Diabo é um Homem Bom. Ana Miranda. «Tivemos uma boa aproximação e começava a sentir simpatia por ele, sentimento que nasce pelo contacto diário das coisas escritas e dos segredos que julgamos…»

jdact e  wikipedia

«(…) Casada aos dezassete anos com um tipo da mesma idade, viu-se só, cinco anos mais tarde, quando o marido lhe fez assinar os papéis do divórcio na cama do hospital. Os médicos tinham-lhe diagnosticado um tumor cerebral e todos esperavam que ela morresse poucos meses depois. No entanto, Raquel agarrou-se, a situação durou e o previsto fim não aconteceu. O marido não se imaginava a passar parte da sua juventude com um ramo de flores a caminho do hospital, para visitar o corpo da esposa definhado pela doença e pelas tentativas da sua cura e abandonou-a. Ela ainda o desculpava dessa traição. Ele não aguentou o choque. Foi-se abaixo. Evitava lembrar que ele partira com outra, fazendo letra morta da promessa até que a morte nos separe. A traição de uma promessa deve ser punida com o inferno, seja lá o que isso for. Para o ex-marido de Raquel, desejei que o inferno fosse de chamas, que o queimassem e o desfigurassem como as crianças da guerra do Iraque e do Afeganistão que as televisões mostram nos horários nobres, a hora dos telejornais. Seria uma vingança justa. Mas, por instinto de sobrevivência, Raquel apagara essa parte do filme da sua memória. É preciso perdoar, repetia a cada passo. A morte passou-lhe, assim, ao lado. Depois de quatro anos de combate, ficou por cá sem pressa, um olhar quieto num rosto quase inexpressivo a deixar adivinhar a paz de um guerreiro, consciente de ter sobrevivido à mais feroz das batalhas. Os dedos serenos procuravam sempre um outro cigarro, quando, sem o exprimir, ficava à espera que eu lhe contasse qualquer coisa de novo. Raquel deixara de falar de si. Ouvir era a sua forma de existir e por isso eu gostava dela. Haverá no mundo, um local mais público que a Torre Eiffel no 14 de Julho? Não, respondia Raquel.
Foi lá que marquei encontro com Jean. Sentei-me na relva ao lado de um casal que esperava o fogo-de-artifício de mãos dadas. As luzes, intencionalmente festivas, traçavam sombras arrastadas por detrás dos arbustos que a multidão amassava sem se dar conta. Eu esperava um homem de camisa branca com uma rosa vermelha, o distintivo combinado via correio electrónico, um banal cliché, perfeito para este tipo de situação. Habituada a ver o mundo tal como é mostrado no ecrã, foi com esses olhos que escolhi uma rosa vermelha numa camisa branca para identificar Jean. Ele pedira-me um vestido decotado de meia manga que me acentuasse as formas. Apreciava a sensualidade feminina. Tínhamos “teclado” durante todo o Inverno, o que me ajudara a passar os fins-de-semana cinzentos em casa sem que a depressão me devorasse. Tudo o que contara a seu respeito eram informações por confirmar. A ideia de me encontrar com alguém cujo verdadeiro nome desconhecia deveria assustar-me, dizia Raquel. Mas não. O que pode um nome dizer sobre a pessoa que o usa? Um nome não é um rótulo nem um código de barras. E depois, nas redes sociais podemos ter todos os nomes, podemos ser todas as pessoas. A escolha é tão vasta quanta a imaginação de quem se propõe ao desafio. Podemos ser nós, com a fidelidade máxima que o ego permite ou qualquer outro. Para muitos, este simulacro torna-se um exercício de sobrevivência. Há gente que procura aqui vidas paralelas, que saltita de um mundo para outro para escapar ao tédio das suas vidas reais, basta certificar o sucesso do Second Life. Seremos todos pequenos avatars? Lembro-me que antes de Jean, “teclei” durantes seis meses, quase diariamente, com Gil. Falávamos de tudo. Parecíamos ambos muito disponíveis e o contacto fluiu. Disse-me ser estudante de economia numa universidade de Tolouse. Tivemos uma boa aproximação e começava a sentir simpatia por ele, sentimento que nasce pelo contacto diário das coisas escritas e dos segredos que julgamos desobscurecer. Na vida virtual, como na vida, a amizade cultiva-se pela fidelidade do contacto, digo eu, sem grande certeza. Em linha, na internet, encontra-se sempre um ouvido virtual capaz de escutar. E aqui, mais do que em nenhum outro lugar, as palavras são como afectos e trazem a certeza de que em qualquer parte, alguém sabe de ti. Gil tornou-se, assim, um amigo assíduo e quis conhecê-lo pessoalmente. A ideia de um encontro pareceu, no entanto, perturbá-lo. Durante vários dias ausentou-se alegando depois que ficara sem computador por causa de um vírus. Não tinha motivos para duvidar. Insisti. Ele quis saber como reagiria eu, se ele fosse outra pessoa. Fui directa. Se me tivesses estado a mentir todo este tempo? Sim respondeu. Desisti do encontro e pedi-lhe que se desmascarasse. Gil acedeu e confessou, então, ser mulher. Estava presa em Kopotnja, perto de Moscovo, uma prisão de mulheres onde a tortura era o passatempo preferido de certos guardas. Queimaram-lhe as solas dos pés e bateram-lhe nas palmas das mãos com grossas réguas de madeira. Outras vezes, enfiavam-lhe um capacete na cabeça e faziam dela uma bola humana. Os maus tratos duravam o tempo de uma confissão, fosse ela qual fosse». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.

Cortesia de EChiado/JDACT