sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Tempo de Lacraus. António Borges Coelho. «O carro subiu a rampa que conduzia ao centro da vila, venceu o pinheiro grande, a fonte como uma ferida na beira da estrada e finalmente a curva das Alminhas»

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«(…) Tu e os teus comentários. Depois o silêncio. Há dois caminhos de regresso, disse André. Pela porta grande, pela estrada larga com banda de música e foguetes ou então pela calada da noite, de alpergatas e saco de riscado às costas, depois de calcorrear à pata o caminho da Brunheda. O silêncio foi ainda quebrado por André. Quando me aproximo da vila, sinto um aperto. Como na infância. Que mal te fizeram estas pedras?, perguntou Basílio. Por mais que faças não te livras delas. Basílio desconfiou de um sentido oculto nestas palavras de Joana. Nos últimos tempos, a rua que mais tenho pisado é a que vai da igreja ao cemitério. Longe vá o agouro. A tarde aproximava-se do fim. As sombras arrefeciam os vales enquanto o Sol galgava rapidamente os cabeços. Quanto mais rápido subia, mais alastrava a sombra. Ninguém consegue alcançar o Sol. Corre. Ficarás com as mãos cheias de sombra e de noite.
No outro lado do vale, a vila de Lilela desmaiava na luminosidade do poente. O automóvel ladeou as muralhas do castro milenar, volteou a Volta Grande, entrou na ponte fontista sobre o rio. Em baixo ficava o açude, a nogueira, a sombra verde-escura dos negrilhos sobre a água que corria entre os seixos e as fragas. Lembras-te da moleira?, disse Basílio. Qual moleira? Não faças de conta... Quem era? A de Schubert?, perguntou Joana. Coisas de criança. Andavam na quarta classe. A filha do moleiro não tirava os olhos de André. Ele respondia fingindo que não olhava. No dia da comunhão solene... André passara a tarde sem dizer uma mentira, pelo menos sem mentir sete vezes, que sete mentiras são um pecado mortal. Tudo para no outro dia estar puro ou pelo menos não ter de passar pela vergonha de se confessar segunda vez. E no momento da comunhão, André avançou do meio das mulheres. Calculou o espaço. E quando a menina voltava, apertada entre o mulherio, colou o corpo ao corpo dela. Sentiu a brandura rija do peito. Tonto de felicidade e de pecado, ajoelhou e abriu a boca a receber o corpo do Senhor. Eu não sou digno, entoava o coro. De que te ris? Confessa. Maluqueiras sem importância. Estou a precisar dum banho.
O carro subiu a rampa que conduzia ao centro da vila, venceu o pinheiro grande, a fonte como uma ferida na beira da estrada e finalmente a curva das Alminhas, ameaçadas pelas chamas debotadas do inferno, violada e vazia a caixa das esmolas. No novelo das gerações, homens e mulheres calcaram aquelas pedras, ataram as vides, cavaram o pó das oliveiras e quase sem mistura prolongaram o sangue. Gente das tribos dos berrões, maculada pelo Mediterrâneo dos romanos e dos mouros e pelos pecados das conquistas. Poucos escravos das épocas coloniais calcaram à pata o dorso das montanhas. Aos que chegaram, vinham em romaria das aldeias apalpar-lhes os ombros, conferir-lhes com os olhos e o riso aberto de espanto a cor do rei Baltasar. O automóvel entrou por fim na rua-estrada. As recordações saltavam de cada casa, dos vivos e dos mortos, alguns calcados pelas rodas dos camiões, outros espetados no fio das navalhas.
Foi aqui, disse Joana. Quê? Vinha a exibir-me na bicicleta mas qualquer coisa correu mal e estatelei-me no empedrado. Magoaste-te? Esfolei os joelhos mas só me lembrava do rasgão nas calças melhores. Correste aflita com álcool e tintura para as feridas. Não senti a tintura, os olhos pregados no teu rosto. E a tia Deolinda a atanazar-me... Diga agora que não há Deus. Lembras-te?, disse Joana. Lembro. Na ideia da tia de Joana, Deus castigava-o pela sua incredulidade, precipitando-o da bicicleta como o arcanjo S. Miguel precipitara o arcanjo Satanás. Ao dobrar a curva, o muro do quintal e o vulto da velha casa. A varanda de madeira corria toda a fachada voltada a sul e olhava na linha do horizonte os montes verde-cinza. André tirou do carro a mala e já a mãe descia a escada de granito. Braços nos braços. Ó meu filho! André notou novos traços naquele rosto, sentiu mais seco e dobrado aquele corpo matriz. Vem amanhã almoçar connosco, disse Joana. Não sei. Por mim não te prendas. Contamos contigo». In António Borges Coelho, Tempo de Lacraus, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-271-6.

Cortesia de Caminho/JDACT