quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Astúrias. José Javier Esparza. «Conta-se que, por Amuesa, saíram em Cosgaya, na vertente cantábrica, no vale de Liébana. Aí, foi a hecatombe. Presos numa montanha sem saída, inundados pelo transbordo dos rios…»

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A batalha de Covadonga
«(…) Ainda que recolha fontes anteriores, e que explica os factos desta outra maneira: disse Isa Ibn Ahmand al-Raqi que em tempo de Anbasa Ibn Suhaim al-Qalbi, se levantou por terras de Galiza um asno selvagem chamado Belay [Pelágio]. Desde então, começaram os cristãos do Al Ándalus a defender contra os muçulmanos as terras que ainda estavam em seu poder, o que não esperavam conseguir. Os islamistas, lutando contra os politeístas e forçando-os a emigrarem, tinham-se apoderado do seu país até que chegasse Ariyula, da terra dos francos, e tinha conquistado Pamplona na Galiza e não tinha ficado senão a rocha onde refugia o senhor (muluk)chamado Belay com trezentos homens. Os soldados não cessaram de o atacar até que os seus soldados morreram de fome e não ficaram na sua companhia senão trinta homens e dez mulheres. E não tinham que comer senão mel que comiam do que as abelhas deixavam nas fendas da rocha. A situação dos muçulmanos chegou a ser penosa, e no fim desprezaram-nos dizendo trinta asnos selvagens, que mal nos podem fazer?
A versão cristã está, evidentemente, destinada a glorificar: a resistência de Pelágio. A versão moura, pelo contrário, a tirar importância ao que aconteceu em Covadonga, dando a entender que os mouros abandonaram voluntariamente o assédio por desprezo para com os resistentes, aqueles asnos selvagens. Quem tem razão? Que versão está mais próxima da verdade? Impossível saber. No entanto, o desenvolvimento posterior dos acontecimentos indica que os mouros foram, de facto, derrotados, porque o facto é que Munuza abandou as Astúrias e os asturianos puderam organizar a vida longe do poder muçulmano. Que se passou exactamente em Covadonga? Podemos reconstruir os factos sem temor de faltar demasiado à verdade. Os rebeldes cristãos, de facto, poucos e mal-armados, embora fortes num terreno que conheciam, foram atacados pelos muçulmanos. Estes, talvez, teriam podido obter a vitória se se tivessem limitado a um cerco para matar os rebeldes à fome. Porém, levados provavelmente pelo desprezo que sentiam em relação àqueles asnos selvagens, cometeram o erro de atacar. Um erro, sim, porque mover exércitos por paragens como aquela, montanhosa e para eles desconhecida, era arriscar-se ao colapso. O tema lendário de que as flechas mouras, ao chegar onde estavam os cristãos, davam a volta e precipitavam-se sobre os atacantes, admite uma interpretação mais realista: quando se lança uma flecha para cima, é difícil manter a pontaria. Isso, sem contar que as flechas, ressaltando na pedra, voltavam a cair pela mera lei da gravidade. E tudo indica que um exército assim, desconcertado, atacado desde o cimo por pedras e flechas, incapaz de responder e de se mover, pode muito bem ser derrubado devido à carga de uns quantos homens decididos e que agiram sobre um só ponto, como diz a tradição que fez Pelágio. Surpreendidos, os mouros trataram de retroceder até terreno plano, nos campos de Cangas. Inutilmente. Nessa carga, conta a mesma tradição que morreu A1-Qama, o chefe muçulmano, e que foi preso o bispo Opas, o bispo traidor, do qual nunca mais se soube.
Porém, a grande derrota dos muçulmanos aconteceu depois. Com as suas fileiras desordenadas, trataram de recuar para recompor as forças. Retiraram-se como puderam para os maciços dos Picos da Europa, que desconheciam, expondo-se a todo o género de emboscadas. Conta-se que, por Amuesa, saíram em Cosgaya, na vertente cantábrica, no vale de Liébana. Aí, foi a hecatombe. Presos numa montanha sem saída, inundados pelo transbordo dos rios, acossados de todos os flancos pelos rebeldes montanheses que desde o cimo das ribanceiras desprendiam grandes pedras sobre eles, o orgulhoso corpo expedicionário de Al-Qama acabou aniquilado pelos asnos selvagens, os rebeldes cristãos. Muito pouco tempo depois, o governador mouro do norte, Munuza, abandonava Gijón. Diz a tradição que ele foi derrotado e morto durante a fuga. Fosse numa grande batalha campal, como dizem as crónicas cristãs, fosse apenas numa violenta escaramuça, como sustentam hoje muitos historiadores, o facto é que Covadonga assinalou o ponto de partida da Reconquista. Ali, os mouros perderam pela primeira vez, ali, os rebeldes cristãos venceram pela primeira vez». In José Javier Esparza, Astúrias, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-626-773-5.

Cortesia EdosLivros/JDACT