domingo, 16 de setembro de 2018

A Armada do Papa. Gordon Urquhart. «… pode dar valor às actividades seculares. Mas como a ênfase é posta no grupo, e não no indivíduo, esta consagração das actividades humanas tem de se realizar dentro do âmbito do movimento»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Com estas origens inteiramente diferentes, um jargão próprio e com as suas exclusividades, à primeira vista estes movimentos parecem ter muito pouca coisa em comum. Uma análise mais cuidadosa revela, entretanto, que eles compartilham muito mais coisas do que seu conservadorismo comum. Uma das características destes movimentos, por exemplo, como era característica também do grande precursor de todos eles, a organização secreta espanhola Opus Dei, era rejeitar todas as definições ou descrições deles mesmos formuladas por estranhos, mesmo que sejam autoridades da Igreja. Eles preferem dizer o que não são a dizer o que são. A recusa de serem enquadrados em definições estreitas é uma expressão do sentimento que eles cultivam de serem chamados para uma missão única.
Assim, não são nem associações nem ordens religiosas. Apesar do facto de serem todos eles altamente clericalizados, se apegam com uma obstinação extraordinária a seu estado de leigos. Como muitas seitas protestantes clássicas, cada um deles alega estar retornando à fé autêntica dos primeiros cristãos. Uma vez o Focolare qualificou-se a si mesmo com a duvidosa expressão os primeiros cristãos do século XX. Estes movimentos também costumam se apresentar como a autêntica expressão do Vaticano. O papa João Paulo endossou vigorosamente este ponto de vista: o grande florescimento destes movimentos e as manifestações de energia e de vitalidade eclesiástica que os caracterizam certamente podem ser considerados como um dos mais belos frutos da vasta e profunda renovação espiritual promovida pelo último concilio. Ele deve saber: como jovem bispo e como teólogo encontrou-se de repente envolvido nesta fantástica virada da vida da Igreja Católica. Esta grande reunião de todos os bispos católicos do mundo, convocados pelo santo papa João XXIII, rejeitou o conceito jurídica e hierarquicamente estático de Igreja Católica pós-tridentina e o substituiu pelo conceito mais dinâmico de Povo de Deus, aumentando assim a importância do laicato. Mas o maior feito do Concílio foi a quebra do dualismo que havia caracterizado o catolicismo.
O papa João havia feito uma alusão a isto quando declarou que a sua intenção ao convocar o Concilio era abrir as janelas da Igreja. A mentalidade clerical que prevalecia até então opunha a Igreja ao mundo, o sagrado ao secular, a alma ao corpo. A Igreja Católica era uma fortaleza da verdade, que tinha todas as respostas, respostas que ela dispensava com autoridade divina. Ela não tinha nada a aprender do mundo. A Igreja pré-conciliar caracterizava-se por um triunfalismo que se exprimia pela pompa monárquica e pela magnificência da corte papal. O mundo e as actividades humanas eram considerados, se não exactamente como um mal, pelo menos como moralmente neutros, a não ser que a Igreja ou seus representantes concedessem a eles um conteúdo especificamente religioso. Daí, antes do Concilio, as cerimónias especificamente religiosas de consagrações, ou de bênçãos, que exprimiam a necessidade de levar a esfera secular para dentro da esfera do sagrado. Em sentido contrário, os padres do Concilio proclamaram que o Mundo e a actividade humana eram bons em si mesmos; não precisavam ser consagrados. Católicos podiam, por conseguinte, viver em harmonia com outros. Entre as verdadeiras convulsões do período pós-conciliar, esta mudança de mentalidade foi provavelmente uma das maiores.
É interessante que, como a Opus Dei, os movimentos que antecederam a este evento, Focolare e Comunhão e Libertação, nunca julgaram conveniente reexaminar as suas atitudes e se reajustar à luz do Concilio, a despeito do facto de inúmeros outros corpos da Igreja, inteiramente integrados à mentalidade vigente, terem sentido a necessidade desta readaptação. Longe de atribuir valor ao mundo, estes movimentos rejeitam a esfera humana como totalmente sem valor, condenando a sociedade nos termos mais virulentos. Os membros são encorajados a integrar todos os aspectos das suas vidas dentro das restrições do movimento, uma vez que todas as influências externas são vistas como fonte de contaminação. Não é possível haver qualquer diálogo com os de fora a respeito de matéria importante de fé, uma vez que os movimentos acreditam que estão de posse da totalidade da verdade e que, por conseguinte, estão em posição de ensinar, nunca de aprender. Eles têm todas as respostas não apenas no domínio espiritual, mas também na esfera secular. Somente uma presença explicitamente religiosa, a própria presença deles, pode dar valor às actividades seculares. Mas como a ênfase é posta no grupo, e não no indivíduo, esta consagração das actividades humanas tem de se realizar dentro do âmbito do movimento». In Gordon Urquhart, A Armada do Papa, tradução de Irineu Guimarães, Editora Record, 2002, ISBN 978-850-106-222-2.

Cortesia de ERecord/JDACT