sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «… de onde vinham chiados de ratos, e avançou cautelosamente à luz de uma lanterna. De repente, ao iluminar uma parte do pavimento, viu alguma coisa... Lá estava!»

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«(…) Decida livremente, Uberto, disse Ignazio. Não é obrigado a aceitar. O rapaz ficou tão surpreso que precisou fazer um esforço para não hesitar. As palavras que ouvira repercutiam na sua cabeça, provocando-lhe arroubos de entusiasmo. Como poderia recusar uma oferta assim? Tinha finalmente a oportunidade de afastar-se do mosteiro e explorar o mundo. O seu maior sonho! Aceito. E de bom grado, respondeu com voz trémula, quase sem pensar. Então está decidido, decretou o abade. Ignazio de Toledo cuidará de si. O mercador levantou-se e pousou a mão no ombro do jovem. Tem a certeza de que tomou a decisão correta? É uma resolução importante, que não se pode tomar levianamente. Tenho, confirmou o rapaz, eufórico. Óptimo. Ignazio parecia satisfeito. Partiremos amanhã, depois dos laudes. Vá preparar o seu alforje, mas não leve muita coisa. Viajaremos com rapidez, recomendou. Ficarei mais alguns minutos com o abade, pois preciso assinar os papéis da sua tutela. O rapaz concordou e saiu, ainda incapaz de acreditar no que havia acabado de acontecer.
A noite diluiu-se numa manhã cinzenta e escura. Um vento fraco agitava os caniços. A barca não era a mesma que levara Willalme a Pomposa. Era mais comprida e mais larga. Tinha na popa uma tenda capaz de abrigar seis pessoas. O casco recurvo, sem quilha, era formado por pranchas fixadas com tiras de couro, resina e breu. Ignazio subiu a bordo, seguido de Uberto e Willalme. O timoneiro, empunhando uma tocha, aproximou-se e perguntou qual era o destino. Veneza, limitou-se a responder o mercador, sentando-se no banco dos passageiros. O homem transmitiu a ordem aos quatro remadores e dirigiu-se para a popa, a fim de assumir o leme. O barco começou a vogar, com os remos produzindo na água uma sequência de ruídos, a princípio confusa, depois mais ritmada. Na margem, alguns monges, envoltos nas suas batinas pretas, saudavam com leves acenos de cabeça. Uberto ficou olhando para eles até se dissiparem na distância como miragens. Não os reveria tão cedo. Ignazio virou-se, com ar soturno, para o mosteiro de Santa Maria del Mar. Logo que possível, voltaria. Não sabia ainda como, mas a morte de Maynulfo seria vingada.
No Castrum abbatis, Rainerio Fidenza despediu Hulco e Ginesio após um breve colóquio. Haviam-se saído muito mal numa missão muito simples e ele próprio quase fora desmascarado: se Ignazio, com o punhal na garganta de Hulco, houvesse perguntado o nome do mandante, Hulco o revelaria... Por sorte, o mercador não fizera isso. Devia ter concluído que os dois bisbilhoteiros haviam decidido entrar por conta própria no seu alojamento. Essa era uma das vantagens de ser abade, de quem raramente alguém suspeitava. Imerso nesses pensamentos, Rainerio afundou-se no assento, com os cotovelos apoiados nos braços da cadeira e os dedos entrelaçados sob o queixo. Reflectia sobre as últimas palavras dos servos: partiu sem levar o baú. Sabemos onde o escondeu! Permaneceu imóvel na penumbra, relembrando do encargo que Scipio Lazarus lhe confiara anos antes, na tranquilidade de um claustro bolonhês. Em seguida, levantou-se e foi para a biblioteca, pronto para levar a cabo a sua cruzada. Era tarde e, pelas estreitas janelas, entrevia-se o céu estrelado. O abade deslizou junto às paredes nuas até chegar ao ângulo mais recuado da biblioteca. Perscrutou as sombras, de onde vinham chiados de ratos, e avançou cautelosamente à luz de uma lanterna. De repente, ao iluminar uma parte do pavimento, viu alguma coisa... Lá estava!» In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

Cortesia CAutor/JDACT