sábado, 22 de setembro de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «A chama subia e descia, lançando sombras no tecto branco. Antes, sempre lhe dera segurança; agora, parecia-lhe menos reconfortante»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Mesmo antes que a claridade enchesse o quarto por completo, Maria estremecia de satisfação com a descoberta: era o ídolo de marfim que havia falado. Era ela. E isso explicava a voz de mulher e as queixas por ter sido escondida. Porque Maria a tinha realmente escondido numa caixa, debaixo de um casaco de inverno, e a caixa estava do outro lado do quarto, de onde viera a voz, e depois a havia esquecido. Cuidadosamente, Maria levantou-se da cama e puxou a caixa, pressionando as dobras do casaco de lã com a mão, e procurando o pacote embrulhado. Lá estava ele. Pegou-o, trazendo-o para a luz acinzentada da manhã. Desembrulhou, com cuidado, e observou o rosto enigmático da deusa sorridente. Como poderia eu ter esquecido?, foi o seu primeiro pensamento aberto. Agora, sim. A voz parecia vir de dentro da sua cabeça. Aquele rosto, fascinante, parecia cada vez mais visível, à medida que clareava a luz do dia. Viam-se as linhas, entalhadas no marfim, marcando os cabelos que escorriam pelos seus ombros, os olhos sonhadores, semifechados, e até o tecido da sua roupa e as jóias simbólicas, tudo, sugerindo o seu poder, mas gentilmente, como uma visão antiga, de um tempo em que as deusas eram poderosas na terra e controlavam o vento, a chuva, as colheitas, o nascimento e a morte. Nasci de novo, à luz do sol. O belo rosto olhava para Maria.
Ponha-me onde eu possa sentir a luz do sol. Fiquei enterrada no escuro por tanto tempo. Enterrada debaixo do chão. Embrulhada, longe da luz. Obediente, Maria deitou a fina imagem de marfim, pois era bem fina, como um entalhe num pedaço de dente, no pé da sua cama, onde batia um pouco de sol. Ahh!..., Maria jurava que ouvira um suspiro, suave. Olhou de perto, atentamente, observando como a luz do dia revelava os traços delicados do entalhe. Quando o sol ficou mais forte, o marfim parecia brilhar, absorvendo a própria luz. Mas foi então que Maria ouviu a sua mãe, do lado de fora da porta, e enfiou rapidamente a imagem de volta sob o casaco de lã, e na caixa, que colocou num canto. Perdoe-me, disse. Muito bem, Maria!, disse sua mãe, no limiar da porta. De pé tão cedo? É um bom começo para o ano novo!
Logo a noite caía. Maria estava deitada na cama, olhando para a luz trémula da lamparina que ficava num vão da parede. A chama subia e descia, lançando sombras no tecto branco. Antes, sempre lhe dera segurança; agora, parecia-lhe menos reconfortante. Não vou sair da cama, disse para si mesma, decidida. Não vou até lá. É só uma peça de marfim, talhada por mãos humanas. Não tem poder algum. Meu nome é Asera, minha filha. Era aquela voz suave. Asera, repetia, sussurrando. E Maria soube que esse era o nome do ídolo, e que ela gostava de ser chamada pelo nome. Asera. Era um nome bonito, tão bonito quanto a própria escultura.
Asera, repetiu Maria, obediente. Tremendo de medo, prometeu secretamente a si mesma (pois, certamente Asera não poderia ler os seus pensamentos): amanhã vou levar o ídolo lá para fora e jogá-lo fora, lá na ribanceira. Não, vou levá-lo para a aldeia e jogá-lo naqueles fornos que tem lá. Não, não posso fazer isso, poderia contaminar o pão. Vou levá-lo para..., vou até... E então, adormeceu, tentando pensar num lugar em que houvesse um fogo purificador, definitivo. Mas no dia seguinte estavam muito ocupados e ela não teve oportunidade para tirar a escultura do ídolo de seu esconderijo e levá-la para fora da casa. Estava tranquila; não sentia o ídolo falando com ela e os seus medos sumiram. O grande Dia do Perdão, dia de jejum ordenado por Moisés, já estava próximo. Nesse dia, em Jerusalém, os sacerdotes fariam as ofertas previstas e organizariam os rituais necessários para alcançar o perdão para o povo de Israel pelos seus pecados, conhecidos e desconhecidos. Após os rituais para expurgar a culpa colectiva, uma cabra seria mandada para um lugar deserto, carregando na cabeça, simbolicamente, os últimos resíduos dos pecados. Ali, presumia-se que morreria, expiando os pecados de uma nação.
Mas, para cada um, individualmente, era um dia interiorizado e triste. Após o ritual de louvar o Senhor, ao entardecer, os fiéis ficavam nas suas casas, usavam roupas de pano cru, espalhavam cinzas sobre suas cabeças e faziam jejum e orações durante o dia inteiro, relembrando e confessando os seus pecados e esperando, dessa forma, o perdão misericordioso de Deus. O dia acabou sendo maravilhoso, tornando mais difícil a tarefa do perdão. Para provocar os crentes e desviar seus pensamentos, o sol parecia pedir-lhes que saíssem das suas casas, lembrando-lhes as festas da colheita e das vinhas: todas as belas dádivas da vida que distraem as pessoas de um exame profundo das suas consciências. Mas na casa de Natã todos ficaram dentro, guardando silêncio e vigília em cada um dos seus quartos. A obrigatória túnica de pano cru que Maria vestia, que significava remorso, coçava tanto que ela achou que estava com pulgas. Não conseguia imaginar como os homens santos que viviam no deserto usavam essas túnicas de pano; nem conseguia imaginar por que ou como essas roupas os faziam santos ou mais próximos de Deus». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT