terça-feira, 11 de setembro de 2018

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «Pétalas. Quatro. Mas ricas, exóticas, carnudas como orquídeas, com finos filamentos, semelhantes a uma teia. Mas pétalas... Aqui?»

jdact

«(…) Falcón desviou os olhos do perfil da vítima e deu em cheio com a imagem frontal, reflectida na tela apagada da televisão. Pestanejou, desejando fechar aqueles olhos fitos, que, mesmo reflectidos, eram penetrantes. O estômago revolveu-se só de pensar no horror das imagens que tinham sido capazes de forçar um homem a fazer aquilo a si próprio. Estariam ainda ali, gravadas a fogo na retina, ou mais atrás, no cérebro, num estado de digitalização de tipo cubista? Abanou a cabeça, pouco habituado a que ideias delirantes como aquelas interferissem na frieza da sua investigação. Deu a volta, até ficar de frente para o rosto dilacerado, ainda sem o ver integralmente porque o móvel da tv/vídeo estava colado contra os joelhos do homem. E nesse momento, Javier Falcón sofreu uma primeira quebra física. As pernas não se dobravam. Nenhuma das habituais mensagens motoras conseguia superar o pânico que lhe tolhia o peito e estômago. Fez o que o juez de guardia tinha recomendado e desviou os olhos para a janela. Registou a luminosidade da manhã de Abril, recordou a inquietação que sentiu enquanto se vestia na penumbra das persianas fechadas, o desconforto deixado por um Inverno longo e solitário, com demasiada chuva. Tanta chuva que até ele reparou que os jardins da cidade tinham rebentos com a profusão de uma selva e a riqueza de uma vasta exposição botânica. Olhou para o terreiro da Feria, que duas semanas depois estaria transformado numa Sevilha de tendeiros, povoado de tendas desmontáveis, para sete dias de muita comida, ingestão de vinhos e dança sevillanas até ao amanhecer. Inspirou fundo e abaixou-se até ficar à altura do rosto de Raúl Jiménez.
O horrível efeito de fixidez era produzido pelos olhos salientes das órbitas, como se tivesse problemas de tiroideia. Falcón passou os olhos pelas fotografias em redor. Jiménez não tinha olhos protuberantes em nenhuma delas. A causa foi... As suas sinapses chocaram como automóveis se envolvendo num acidente em cadeia. O globo ocular visível. O sangue escorrido pela face. A coagulação na linha do queixo. E isto? O que são estas coisas delicadas no peito da camisa? Pétalas. Quatro. Mas ricas, exóticas, carnudas como orquídeas, com finos filamentos, semelhantes a uma teia. Mas pétalas... Aqui? Recuou, levantou a borda do tapete e caiu no chão de tacos, ao tropeçar no cabo de alimentação do televisor, o que fez saltar o plugue da tomada. Engatinhou até bater na parede; ficou sentado de pernas abertas, com espasmos nas coxas e os sapatos tremendo. Pálpebras. Duas de cima. Duas de baixo. Nada o podia ter preparado para aquilo.
Sente-se bem, inspetor-chefe? É você, inspetor Ramírez? Perguntou, levantando-se devagar e desajeitadamente. A Polícia Científica está pronta para entrar. Mande aqui o médico forense. Ramírez desapareceu do vão da porta. Falcón se recompôs. O médico forense chegou. Viu que cort... Retiraram as pálpebras a este homem? Claro, inspetor-chefe. O juez de guardia e eu próprio tivemos de confirmar que o homem estava morto. Vi que as pálpebras tinham sido removidas e... Está tudo nas minhas notas. A secretária anotou o facto, também. Era difícil não se dar por isso. Não, não; não tenho dúvidas quanto a isso... Só me admirei que não me tivessem dito. Acho que o juez Calderón lhe dizer, mas... A cabeça careca do médico forense rolou sobre os ombros. Mas o quê?... Acho que ele se intimidou com a sua experiência nestes assuntos. Tem alguma opinião sobre a causa e hora da morte? Perguntou Falcón. Sobre a hora, cerca das quatro, quatro e meia desta madrugada. Sobre a causa, bem, vamos a ver, o homem tinha mais de setenta anos, excesso de peso, era fumante de cigarros, que preferia sem filtro, e, na sua qualidade de empresário de restaurantes, apreciava um bom copo de vinho. Mesmo um jovem em plena forma teria tido dificuldade em suportar estes maus tratos, esta agonia física e moral, sem sofrer um choque profundo. Morreu de ataque cardíaco, não tenho dúvidas. A autópsia vai confirmar... Ou não. O médico forense terminou, incomodado com a firmeza do olhar de Falcón e aborrecido com a idiotice da sua declaração final. Saiu e foi imediatamente substituído na porta por Calderón e Ramírez.
Vamos a isto, disse Calderón. Quem chamou os serviços de emergência? Perguntou Falcón. O conserje, disse Calderón; o porteiro. Depois da criada ter... Depois da criada ter entrado, achado o corpo, saído correndo do apartamento e voltado de elevador para o rés-do-chão...?» In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT