terça-feira, 25 de setembro de 2018

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «… plausivelmente atribuíveis a reformulações tardias, com a particularidade de relativamente ao último elemento se remeter para momento em que as abadias eram doze»

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«(…) Estaria em concordância com a data indicada a referência ao comportamento negativo do papa Pascoal II que se deixou cair nas mãos do imperador germânico a ponto de lhe conceder (por extorsão no cárcere) o privilégio das investiduras (pecado de funestas consequências e que os cistercienses procuraram combater juntamente com o episcopado francês e com a intelectualidade mais empenhada do tempo). No entanto, o teor da referência é, demasiado genérico, pelo que parece serem de postular alguns anos de intervalo, quando a própria actuação pontifícia assume a questão de forma mais radical. Esta situação pode ver-se reflectida na personalidade do papa Calisto II, com a vantagem de ela aparecer como referência explicitadora de outros elementos. De facto, enquanto bispo de Vienne, ele fora um dos mais virulentos opositores da actuação de Pascoal II. Por outra parte, é a ele que os fundadores, motivados certamente pela familiaridade mantida nas negociações para a fundação da abadia de Bonnevaux (entre 1117 e 1119), recorrem a fim de obterem a confirmação dos seus actos, dos Capítulos e Constituições, ou, noutra formulação, de alguns capítulos relativos à observância da Regra de S. Bento e a algumas outras aplicações ditadas pela natureza da Ordem e da fundação. A aprovação teve lugar a 23 de Dezembro de 1119.
Fosse para apoiar as suas pretensões, declarando que desde sempre os fundadores se tinham pautado por formas canónicas e em harmonia com as autoridades (pelo que se lembravam os actos do arcebispo de Lião, legado pontifício, e as aprovações do papa Pascoal II), fosse para enquadrar o acto pontifício que lhes chegava, o Exordium traçava as linhas da evolução da nova observância. Não servia menos para celebrar com regozijo a expansão da nova Ordem, colocando como demonstração da benevolência divina e aprovação das opções tomadas a entrada maciça de novos monges, que permitiam a difusão para longe das fronteiras primitivas. Aos que iam tomando as responsabilidades noutros lugares não era certamente molesto lembrar o percurso que fora feito e a necessidade de manter a coesão, a unanimidade, pois todos a queriam preservar nesses anos de fervor.
O artifício do discurso em primeira pessoa que encontramos no início do documento pode dever-se a uma transposição literária que o próprio abade do momento, Estêvão Harding, depois de ter visto partir Roberto (forçado a regressar a Molesme, no ano imediato ao da fixação em Cister) e de ter assistido à morte de Alberico, dificilmente reivindicaria para si em exclusivo. Mas, se alguém o endossava a todos, a comunidade inteira participava da rememoração. É provável, no entanto, que a forma actual do Exordium Paruum seja resultado de intervenções posteriores, onde se reflectem tensões que se tornam mais evidentes entre 1130 e 1150 entre cistercienses e clunicenses. Nessas condições, um Exórdio Primitivo que acompanharia os documentos apresentados ao papa e bem assim, posteriormente, a bula de aprovação, teria sofrido remodelações, mas elas são difíceis de determinar. Poderá imaginar-se também que a celebração dos primeiros capítulos gerais, em que tomavam assento os abades da primeira geração (todos eles saídos de Cister, mas com pouco tempo de permanência na casa-mãe, pois, pouco mais de um ano após a entrada e uma vez realizado o ano de provação haviam partido), tenha sido ocasião para constituir uma primeira redacção dos factos primitivos.
O carácter elaborado desse início do EP, com estrutura de epitáfio (em que se nota a identificação de um sujeito de relação, a mensagem de base, o apelo à rememoração do leitor) bem como a forma de organização, de todo o texto obrigam a atribuir-lhe, mais que uma data, uma intenção. É evidente um propósito didascálico e revalorizativo desses inícios, com afirmações tão características como o de acentuar a legitimidade canónica da fundação e a creditação do género de vida através de normas bem definidas. O final do documento, ao assinalar, por outro lado, o acontecimento da entrada de Bernardo e dos seus familiares, deixa em aberto a suspeita de alguma tentativa de valorização intensiva de um momento privilegiado, se é que não também alguma tensão momentânea entre duas gerações (representadas emblematicamente por Estêvão e Bernardo), tensão essa superada no reconhecimento das diferenças e na alegria de viver num mesmo projecto de perfeição.
Por outro lado, não é de excluir que a redacção tenha sido objecto de amplificações ou refundições e acrescentos motivados por circunstâncias várias, mormente as tensões entre monges negros (Cluni) e monges brancos (Cister), em tempos em que Molesme decaía do seu fervor primitivo e se tornava necessário reafirmar a pureza de intenções dos fundadores, em tom mais ou menos polémico, o que nos levaria para uma data entre 1140 e 1150 e permitiria explicar alguns dados, como a ruptura com o duque e a proibição de utilizações do mosteiro por parte dele ou a referência à confirmação da Carta Caritatis, dados esses mais plausivelmente atribuíveis a reformulações tardias, com a particularidade de relativamente ao último elemento se remeter para momento em que as abadias eram doze». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT