quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «Um dos traços mais essenciais da história nova é, sem dúvida, esse deslocamento do descontínuo: a sua passagem do obstáculo à prática; a sua integração no discurso do historiador…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O aparecimento dos períodos longos na história de hoje não é um retorno às filosofias da história, às grandes eras do mundo, ou às fases prescritas pelo destino das civilizações; é o efeito da elaboração, metodologicamente organizada, das séries. Ora, na história das ideias, do pensamento e das ciências, a mesma mutação provocou um efeito inverso: dissociou a longa série constituída pelo progresso da consciência, ou a teleologia da razão, ou a evolução do pensamento humano; pôs em questão, novamente, os temas da convergência e da realização; colocou em dúvida as possibilidades da totalização. Ela ocasionou a individualização de séries diferentes, que se justapõem, se sucedem, se sobrepõem, se entrecruzam, sem que se possa reduzi-las a um esquema linear. Assim, apareceram, em lugar dessa cronologia contínua da razão, que se fazia remontar invariavelmente à inacessível origem, à sua abertura fundadora, escalas às vezes breves, distintas umas das outras, rebeldes diante de uma lei única, frequentemente portadoras de um tipo de história que é própria de cada uma, e irredutíveis ao modelo geral de uma consciência que adquire, progride e que tem memória. Segunda consequência: a noção de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas históricas. Para a história, na sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos, decisões, acidentes, iniciativas, descobertas, e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos.
A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador encarregava-se de suprimir da história. Ela tornou-se, agora, um dos elementos fundamentais da análise histórica, onde aparece com um triplo papel. Constitui, de início, uma operação deliberada do historiador (e não mais o que recebe involuntariamente do material que deve tratar), pois ele deve, pelo menos a título de hipótese sistemática, distinguir os níveis possíveis da análise, os métodos que são adequados a cada um, e as periodizações que lhes convém. É também o resultado da sua descrição (e não mais o que se deve eliminar sob o efeito de uma análise), pois o historiador se dispõe a descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexão de uma curva, a inversão de um movimento regulador, os limites de uma oscilação, o limiar de um funcionamento, o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular. Ela é, enfim, o conceito que o trabalho não deixa de especificar (em lugar de negligenciá-lo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras positivas); ela toma uma forma e uma função específica de acordo com o domínio e o nível em que é delimitada: não se fala da mesma descontinuidade quando se descreve um limiar epistemológico, a reversão de uma curva da população, ou a substituição de uma técnica por outra. Paradoxal noção de descontinuidade: é, ao mesmo tempo, instrumento e objecto de pesquisa, delimita o campo de que é o efeito, permite individualizar os domínios, mas só pode ser estabelecida através da comparação desses domínios. Enfim, não é simplesmente um conceito presente no discurso do historiador, mas este, secretamente, a supõe: de onde poderia ele falar, na verdade, senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objecto a história, e sua própria história? Um dos traços mais essenciais da história nova é, sem dúvida, esse deslocamento do descontínuo: a sua passagem do obstáculo à prática; a sua integração no discurso do historiador, no qual não desempenha mais o papel de uma fatalidade exterior que é preciso reduzir, e sim o de um conceito operatório que se utiliza; por isso, a inversão de signos graças à qual ele não é mais o negativo da leitura histórica (seu avesso, seu fracasso, o limite do seu poder), mas o elemento positivo que determina o seu objecto e valida a sua análise. Terceira consequência: o tema e a possibilidade de uma história global começam a apagar-se, e vê-se esboçar o desenho, bem diferente, do que se poderia chamar uma história geral. O projecto de uma história global é o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio -material ou espiritual, de uma sociedade, a significação comum a todos os fenómenos de um período, a lei que explica a sua coesão, o que se chama metaforicamente o rosto de uma época. Tal projecto está ligado a duas ou três hipóteses: supõe-se que entre todos os acontecimentos de uma área espaço-temporal bem definida, entre todos os fenómenos cujo rasto foi encontrado, será possível estabelecer um sistema de relações homogéneas: rede de causalidade permitindo derivar cada um deles relações de analogia mostrando como eles se simbolizam uns aos outros, ou como todos exprimem um único e mesmo núcleo central; supõe-se, por outro lado, que uma única e mesma forma de historicidade compreenda as estruturas económicas, as estabilidades sociais, a inércia das mentalidades, os hábitos técnicos, os comportamentos políticos, e os submeta ao mesmo tipo de transformação; supõe-se, enfim, que a própria história possa ser articulada em grandes unidades, estágios ou fases, que detêm em si mesmas o seu princípio de coesão. São estes postulados que a história nova põe em questão quando problematiza as séries, os recortes, os limites, os desníveis, as desfasagens, as especificidades cronológicas, as formas singulares de permanência, os tipos possíveis de relação. Mas não que ela procure obter uma pluralidade de histórias justapostas e independentes umas das outras: a da economia ao lado da das instituições e, ao lado delas ainda, as das ciências, das religiões ou das literaturas; não, tampouco, que ela busque somente assinalar, entre essas histórias diferentes, coincidências de datas ou analogias de forma e de sentido». In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.

Cortesia de FUniversitária/JDACT