terça-feira, 9 de abril de 2019

A Grande Ilusão. Norman Angell. «Para uma geração que vivia sob o extraordinário impacto intelectual da Origem das Espécies, era inevitável a extensão das ideias de Darwin ao campo social e político»

Cortesia de wikipedia

«(…) O aumento da população permitia formar grandes exércitos, baseados na instauração do serviço militar universal, prática que se difundiu rapidamente de país a país, a partir do exemplo dado pela Alemanha. Entre 1870 e 1896 os efectivos militares desse país triplicaram, chegando a três milhões de homens; os da França igualaram esse número, os da Rússia ultrapassaram quatro milhões e os da Áustria os dois milhões. No mesmo período, as despesas correspondentes à defesa nacional das principais potências europeias aumentaram em mais de cinquenta por cento. Paralelamente, os militares galgavam os lugares mais altos na escala do prestígio social, e a vida nos quartéis era evocada como um afastamento benéfico das vicissitudes e incertezas do mundo do trabalho e dos negócios. A despeito da sua curta duração, o conflito franco-prussiano de 1870-1871 havia representado um passo adiante no sentido da guerra total. Nunca antes o Estado e a população de uma sociedade se haviam empenhado daquela forma numa luta de morte contra o Estado e a população de outra. Dizia-se que os dois povos mais organizados e nacionalistas da Europa tinham chegado a degolar-se mutuamente. Nessa guerra, para a qual as duas potências mobilizaram quase três milhões e meio de soldados, as baixas por todos os motivos foram de cerca de 450 mil, e no transcurso das hostilidades foi introduzida uma novidade aterradora: o bombardeio de cidades indefesas.
O que estimulava o negócio das armas para alentar a paz armada era a difusão das ideias do nacional militarismo, com a sua conjugação de realismo político com a exaltação do poder. Como se sabe, um dos fenómenos ideológicos mais singulares da segunda metade do século XIX foi a conversão do nacionalismo de cunho liberal, surgido com a Revolução Francesa na condição de ideário do direito das nacionalidades, num pensamento reaccionário que opunha a nação à democracia, e se incumbia de auspiciar a expansão imperialista. A força e o sagrado egoísmo eram os traços característicos de uma nova concepção da nação. A vibração patriótica se difundia por todo o corpo social, convertendo-se, de certo modo, numa das formas de reacção colectiva diante dos fenómenos nascidos da unificação económica do mundo. Esta vibração levaria centenas de milhares de jovens aos campos de batalha com uma atitude de júbilo festivo.
O nacionalismo de tom patriótico encontrou um aliado inesperado no progresso da educação e no surgimento da imprensa de massa. Não se verificou a presunção liberal de que esses progressos deveriam conduzir à formação de uma opinião pública bem informada que actuasse para conter os ímpetos discricionários e belicosos de reis, generais e diplomatas; com efeito, estes encontrariam novos pretextos para os seus jogos de poder. A lógica capitalista não se atraiçoava: os lucros de muitas empresas jornalísticas cresceriam à medida que inflamavam as emoções dos leitores e seus preconceitos étnicos, religiosos e nacionais. A legitimação do léxico do poder constituía uma das notas características da época. O que políticos ou governantes estavam naturalmente dispostos a fazer encontraria respaldo valioso na argumentação exibicionista de filósofos e cientistas. Conforme a recomendação de um estadista austríaco, ecoando lições de Treitschke, tratava-se de que quem tivesse poder decidisse conservá-lo, utilizando-o em seu proveito. O filósofo Walter Bagehot afirmava: as nações mais fortes tendem a prevalecer sobre as outras, e em certos aspectos notáveis a mais forte tende a ser a melhor.
Para uma geração que vivia sob o extraordinário impacto intelectual da Origem das Espécies, era inevitável a extensão das ideias de Darwin ao campo social e político. O poder e a força seriam critérios irrecorríveis da verdade. A conversão do conceito de nação ao nacionalismo com certeza não teria sido possível, pelo menos com a virulência com que ocorreu, sem a irrupção, com respaldo científico, de um novo elemento da cultura política da época: a ideia de que na vida do homem a competição não podia ser considerada qualitativamente diferente da existente na natureza. Esse nacionalismo, fortemente comprometido com a corrida armamentista, se combinava com um pensamento belicista que, por sua vez, crescia com a contribuição de diferentes vertentes. Este era o raciocínio dos que viam a guerra como uma fatalidade, à qual era necessário ajustar-se com realismo mais ou menos resignado, assim como dos que proclamavam a sua conveniência e estavam dispostos a dar-lhes as boas-vindas. Uns argumentavam que o flagelo tinha raízes na agressividade intrínseca da natureza humana, sendo portanto irredutível. Outros diziam que se tratava de um factor adequado para proteger ou restaurar a saúde das sociedades; segundo Renan, era a chicotada que impede que um país adormeça e que obriga a mediocridade a sacudir a sua apatia». In Norman Angell, A Grande Ilusão, Universidade de Brasília, 1987, tradução de Sérgio Bath, Colecção Clássicos, ImprensaOE, EditoraUB, InstitutoPesquisaRI, São Paulo, 2002, ISBN 857-060-089-5.

Cortesia de EUB/IPRI/JDACT