terça-feira, 2 de abril de 2019

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Vestidas para irem com os pais à missa cantada das dez horas na igreja de Santa Madalena, as meninas conseguem escapar de casa para o jardim…»

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1754-1758
«(…) Julgando reconhecer aquele vulto imóvel que parece esperá-la, nimbado em contraluz pelo intenso sol do meio-dia, Leonor Távora afasta, curiosa, a leve cortina de cetim bordado a ouro, para se debruçar um tudo-nada. Durante esse breve segundo olham-se nos olhos uma da outra, estremecendo ambas com a invasiva e maligna sombra neles adivinhada. Inclinando-se para trás, a marquesa deixa tombar depressa a cortina e, lívida, recolhe-se na penumbra velada, à espera de encontrar na força e na atenção do marido a coragem que de súbito lhe falta. Mas Francisco Assis sente-se por demais inquieto e distante para reparar no sobressalto dela, a tranquilizar-se a seu lado à medida que o tempo passa. E quando chegam à casa deles na Rua da Boa-Viagem vão ainda em silêncio, interditos e apreensivos com o despacho do secretário Sebastião José Carvalho Melo, a preveni-los de que, sem mais demora, El-Rei quer recebê-los. Paralisada sob o calor que a abrasa, a bruxa espera que a carruagem passe, quando uma das pequenas janelas inesperadamente se abre e uma mulher se curva para a olhar, deixando-a mergulhar por inadvertência ou espanto até ao fundo violeta dos seus olhos, onde o sangue e a morte se misturam, pois poucos anos a separam já do seu fim horrível. E quando o carro se perde ao longe, encoberto pela poeira levantada, a bruxa foge espavorida, sentindo-se perseguida pelos próprios poderes, que escapam ao seu controlo, a fazê-la adivinhar segredos que deveriam manter-se ignorados até chegar a sua hora.

Vestidas para irem com os pais à missa cantada das dez horas na igreja de Santa Madalena, as meninas conseguem escapar de casa para o jardim onde tentam passar despercebidas enquanto se apressam nas áleas geométricas, esgueirando-se por entre as faias, a dominarem o riso e a vontade de correr, apesar de se sentirem contrafeitas nos vestidos de cambraia, folhos de tule e renda a travarem-lhes o passo miúdo, toucas bordadas que naquele primeiro de Novembro tanto as amenizam como as fazem suar, pois mais parece estar-se no pino do verão do que no dia de Todos os Santos a caminho do inverno. Mal a porta, impelida a custo de tão pesada, se fecha sem ruído, logo se libertam das capas, dos livrinhos de missa, dos ramos de alecrim que ficam caídos nos altos degraus da escadaria de mármore que desce até ao pátio ladeado pela torre do relógio, a ala dos serviçais oposta ao lado onde ficam as seges, e logo adiante a casa do frio e as cavalariças. Sem falarem uma com outra, dissimulando a alegria de se verem soltas, elas hesitam, acabando por ir até à fonte dos anjos de mármore onde mergulham na água fresca as mãos até aos pulsos estreitos, para depois se salpicarem, uma correndo atrás da outra em torno das tílias e dos cedros, já perto do muro demarcador do pomar, que por sua vez separa a mata que ladeia a prisão do Limoeiro, onde àquela hora um condenado espia por entre as grades da janela da cela, fascinado pela luz mosqueada, no centro da qual duas meninas brincam à apanhada no jardim da quinta dos condes de Assumar, perseguindo-se e correndo na lisura das pedras dos carreiros contornados pelo buxo aparado rente, paralelo ao desenho geométrico dos canteiros de goivos e de cravos-da-índia, dos lírios e das açucenas de um branco açucarado de nuvem.
Mas quando, entre assomos de riso, estão prestes a esconder-se na sombra da latada de rosas púrpura, chega-lhes um revolvido e surdo clamor subido das entranhas da terra, ao mesmo tempo que o chão lhes foge debaixo dos pés, desequilibrando-as. Assustadas, franzem as pálpebras a verem a luz translúcida e límpida da manhã tremeluzir, dançar frente aos seus olhos claros, paralisadas num demorado espasmo de medo, para de imediato se agarrarem uma à outra apavoradas ante as convulsões da terra e o intenso bramido que se levanta à mistura com o desabalado tocar de sinos, com os gritos, imprecações e preces, gemidos dilacerados e súplicas, chamamentos em pânico a subirem de tom à sua volta, acabando por se juntar num único fragor desmedido, que trepa já pelas abaladas colinas de Lisboa, onde se sucedem as ruínas». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT