domingo, 7 de abril de 2019

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Seria uma boa oportunidade para Adam? O garoto gostava de cantar desde que as luzes da ribalta não o focassem só ele…»

jdact e wikipedia

«(…) Um sobrinho pequeno e tagarela a contar-me histórias que eu não era obrigado a compreender nem a interpretar, aquilo era uma bênção do céu.

Logo Adam e eu ganhámos o hábito de visitar Izzy depois da escola e almoçar com ele. Os nazistas tinham fechado a elegante relojoaria que meu amigo possuía na Cidade Nova, e agora ele consertava relógios numa oficina fria e húmida que mais parecia uma masmorra, situada na parte da frente de um armazém de artigos de papelaria na rua Zamenhof. Aquilo de que Adam mais gostava nas tardes que lá passávamos era ver Izzy fazer uma demorada operação num relógio. O menino punha-se de joelhos na cadeira e inclinava-se sobre a mesa, com o queixo apoiado nas mãos fechadas, fascinado com a forma como aquele tio de consideração conseguia manejar a pinça e colocar no lugar certo as mais microscópicas engrenagens, rodas dentadas e molas. E ressuscitar o que estava morto. De certa forma, Izzy transformou-se no feiticeiro da história de Adam no gueto. Tal como Ziv se transformaria em breve no génio desajeitado…
Um sábado ao fim da tarde, no princípio de Novembro, o aprendiz de padeiro passou lá por nossa casa com um tabuleiro de xadrez de alabastro debaixo do braço e desafiou-me para um jogo. Como um garoto de escola incapaz de se vestir sem a ajuda da mãe, trazia a fralda da camisa branca à mostra, e os cadarços de um sapato soltos. O cabelo grosso e ruivo cobria-lhe as orelhas numa desordem desmazelada. Eu achei que ia ter sorte contra aquele desastrado, mas depois de vinte minutos ele já me levara a rainha, ambos os bispos e uma torre. Pior: o atrevido escolhia os lances à velocidade da luz, de tal modo que era sempre eu a jogar. Uns minutos mais tarde, já tinha encurralado o meu rei. Quando Adam lhe perguntou como é que conseguia jogar tão depressa, Ziv respondeu: sempre consegui planear com vários lances de antecedência; ultimamente, uns dez ou doze.
Depois disso, meu sobrinho começou a olhar para aquele rapaz mais velho do que ele com uma curiosidade ávida, e nessa noite, já tarde, veio, meio sonolento até a janela do nosso quarto, onde eu estava acendendo o cachimbo, e perguntou-me se eu achava que Ziv era mais inteligente do que as outras pessoas. Talvez, mas há maneiras diferentes de se ser inteligente, disse-lhe eu. É por isso que ele está sempre calado e é tão…, tão estranho? Com um suspiro, segurei o seu ombro. Espere só até ter 17 anos, rapaz, e verá que não é uma idade fácil.

Enquanto me dava uma sova no xadrez, Ziv comentara que o pai de Ewa, que era pediatra, começara a fazer exames médicos nos meninos de um coro interescolar. Seria uma boa oportunidade para Adam? O garoto gostava de cantar desde que as luzes da ribalta não o focassem só ele, e quando, na manhã seguinte, lhe perguntei se não se importava que eu falasse com o diretor musical, concordou imediatamente. Nessa tarde, descobri o seu nome, Rowan Klaus, e fui até ao seu pequeno escritório, na escola de Adam. Era um jovem sério de 20 e poucos anos, de tez morena e uns olhos pretos inteligentes, bem-apessoado, com ar misterioso, sefardi. Rowy, como ele gostava que o chamassem, contou-me que estudara violino no Conservatório de Viena até os nazistas acrescentarem a Áustria ao seu saquinho de guloseimas. Tinha uma tala artesanal no dedo indicador direito, e quando lhe perguntei o que era aquilo, respondeu-me que acabara de regressar de um campo de trabalho onde os alemães o tinham obrigado, a ele e a mais vinte judeus, a cavar valas ao longo do Vístula.
Aquelas bestas sabiam que eu era violinista, por isso, quando acharam que não estava cavando suficientemente depressa, seguraram-me no chão e partiram o meu dedo com um martelo. Agora, andava aterrorizado, com medo de ser vítima de mais uma batida para angariar homens para trabalhos forçados. Estou sempre pagando subornos, mas eles não dão garantias, disse-me, taciturno. Na meia hora que se seguiu, Rowy falou da música como uma nobre vocação, sublinhando a suas opiniões com palavrões em alemão e gestos exuberantes das mãos. Adam ia ficar encantado com ele, por isso o inscrevi para uma audição imediata, e nessa mesma tarde ele conseguiu, lá, aguentar-se nos altos e baixos da sua prova de solfejo. Contudo, ainda seria preciso passar no exame médico». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT