segunda-feira, 15 de abril de 2019

Rainha e Mulher. Cleópatra. Terenci Moix. «A nuvem negra pousava sobre todas as cores da paisagem, tão sensível nos albores do mês de Atir, quando a luz já não chega, esgotada pelos flagelos do estio»

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«Cleópatra Sétima, rainha do Egipto, amante de Júlio César e de Marco António, soberana de um império em decadência cujas fronteiras sonha ampliar para muito além dos limites a que chegaram os antigos faraós. Uma vulgar prostituta? Uma criatura ambiciosa que não hesita em matar para concretizar os seus projectos? Uma destruidora de homens? Neste belo romance de amor e morte, ganhador do Prémio Planeta de 1986, o escritor catalão Terenci Moix mostra uma outra verdade sobre essa mulher deslumbrante, dona de vasta cultura e de enorme habilidade política, uma das personagens mais fascinantes da História.

«Quando à meia-noite se ouvir
passar uma invisível folia
com música maravilhosa e grandes vozes,
tua sorte que declina, tuas obras fracassadas,
os planos da tua vida que não deram certo,
não chores em vão.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
dá o teu adeus a Alexandria, que se afasta.
Não te enganes,
Não digas que foi um sonho.
Não aceites tão vãs esperanças.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
como convém a quem de tal cidade foi digno,
aproxima-te com passo firme da janela
e ouve com emoção, não com lamentos
nem súplicas de fracos, como derradeiro prazer,
os sons, os maravilhosos instrumentos da
folia misteriosa,
e dá o teu adeus a esta Alexandria
que perdes para sempre». In Cavafis, O deus abandona Antônio

«E disse a mulher: maldito seja Amor, que me assassina. Tingi de morte o Nilo. Cobri de luto as nuvens. Convertei o Egipto em sepulcro. E assim se fez. O pavor foi descendo pelo rio. A morte instalou-se nas suas margens. E caiu o inferno sobre o universo. Cumprida a ordem, uma densa nuvem negra cobriu os céus nos quais nunca há nuvens. Tão insólita era que se diria o véu de uma deusa traiçoeira. Dir-se-ia sangue apodrecido gotejando sobre os frondosos palmeirais, as florestas de papiros, os pomares e jardins que um dia foram férteis. Uma galera real vogava com majestosa lentidão em busca dos confins mais remotos do reino, onde este se perde nos desertos que correm em busca das selvas ignotas, onde dizem que nasce o rio santo. O negror chegava acompanhado por hinos tão tristes quanto o dia. Era a percussão incessante de cem timbales doloridos. Era o bater de cem remos nas águas, por sua vez tão tristes que também se tornaram negras. As ribeiras encheram-se de camponeses procedentes dos vilarejos mais próximos. Chegavam em procissão, e nos seus rostos enrugados, nas suas rugas sulcadas pelo sol de muitos séculos, o espanto alternava-se com o medo. Jogavam-se no chão, escondiam a cabeça entre os juncos, golpeavam o peito com pedras afiadas e esfregavam os olhos com lodo, como se vem fazendo desde os tempos mais remotos quando morre um monarca ou quando a natureza interrompe o seu curso inexorável, porque os deuses não estão satisfeitos.
A nuvem negra pousava sobre todas as cores da paisagem, tão sensível nos albores do mês de Atir, quando a luz já não chega, esgotada pelos flagelos do estio. Os palmeirais e os trigais, os bosques de sicómoros, as mimosas, os hibiscos, as heras que sobem pelos palácios, tudo que ontem foi uma profusão de esplendoroso colorido ficava encerrado naquela cor única, manto sinistro que os camponeses, aterrados, não podiam reconhecer. Pois ignoravam o tipo de perfume de cuja mescla brotava. Perfumes que os escravos negros da nave espargiam por toda parte. Perfumes das noites de Alexandria! Emanações entre-mescladas de sândalo, almíscar e ambarina; essências de incenso, patchuli e da mirra que adormece os sentidos; flutuações de heliotrópio e açucenas combinadas com o sumo oleoso que as gardénias destilam quando roçam o sexo de uma virgem nabateia». In Terenci Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher, Prémio Planeta de 1986, Globo, Livros Loureiro, tradução de Eduardo Brandão, Wikipédia.

Cortesia de LLoureiro/Globo/Wikipédia/JDACT