segunda-feira, 8 de abril de 2019

A Hora do Diabo. Fernando Pessoa. «Vivemos neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscura treva visível, por assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade…»

jdact e wikipedia

A Hora do Diabo
«(…) A mais alta iniciação acaba pela pergunta encarnada de se há qualquer coisa que exista. O mais alto amor é um grande sono, como aquele em que nos amamos de dormir. Às vezes eu mesmo, que devera ser um alto iniciado, pergunto ao que em mim é de além de Deus se estes deuses todos e todos estes astros não serão mais que sonos de si mesmos, grandes esquecimentos do abismo. Não pasme de que eu assim fale. Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é um sistema especial de moral velado em alegoria e ilustrado por símbolos. Não (disse ela rindo) sempre há de haver uma religião verdadeira... Sim (rindo mais) ou então são todas falsas. Minha senhora, todas as religiões são verdadeiras, por mais opostas que pareçam entre si. São símbolos diferentes da mesma realidade, são como a mesma frase dita em várias línguas; de sorte que se não entendem uns aos outros os que estão dizendo a mesma coisa. Quando um pagão diz Júpiter e um cristão diz Deus estão a pôr a mesma emoção em termos diversos da inteligência: estão a pensar diferentemente a mesma intuição.
O repouso de um gato ao sol é a mesma coisa que a leitura de um livro. Um selvagem olha para a tormenta do mesmo modo que um judeu para Jeová, um selvagem olha para o sol do mesmo modo que um cristão para o Cristo. E porquê, minha senhora? Porque trovão e Jeová, sol e cristão, são símbolos diversos da mesma coisa. Vivemos neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscura treva visível, por assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade até que o tempo e as circunstâncias restituam a verdadeira. Corrompo mas ilumino. Sou a Estrela Brilhante da manhã, frase, por sinal, que já foi duas vezes aplicada, não sem critério ou entendimento, a outro que não parece eu. O meu marido disse-me uma vez que Cristo era o símbolo do sol... Sim, minha senhora. E porque não será verdade o contrário que o sol é o símbolo de Cristo?
Mas o Senhor vira tudo do avesso... É o meu dever, minha senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas o espírito que contraria? Contrariar é feio... Contrariar actos, sim... Contrariar ideias, não. E porquê? Porque contrariar actos, por maus que sejam, é estorvar o giro do mundo, que é acção. Mas contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo. Há, minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas que tudo é obra do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação.
Parece não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas supondo que haja coisas e relações são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique, ou ambos as expliquem. Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma grande paisagem de arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e, devo dizer-lho, verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa, não sei. As aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos, os aborrecimentos do que não aborrece tudo isso é obra minha, nascida de quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles sentem-se diferentes de si mesmos». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8

Cortesia AAlvim/JDACT