segunda-feira, 29 de abril de 2019

Pensar é Transgredir. Lya Luft. «Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta»

Cortesia de wikipedia e jdact

Agendar a Vida
«(…) Ou: quinze minutos para se recostar para trás na cadeira (pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela; ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler..., ou simplesmente não fazer nada. O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada. Não falo da inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei de ficar de robe-velho e pantufas (vi numa vitrine algumas com cara de cachorro e até orelhas!) pela casa até ao meio da tarde. Falo de viver. Parar, olhar, escutar, dizia um aviso nos trilhos do trem quando havia trem entre a minha cidade e Porto Alegre. A gente passava de carro sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém infringir isso e ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça. A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem se esquecer de às vezes parar p’ra pensar..., mas sem se desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas (sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas (a alma pode brincar de esconde-esconde entre as folhas). E escutar: a música do universo, o canto do sabiá (que tem começado às 3 da madrugada fria, atarantado neste clima estranho); a risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que nos convoca de mil formas: anda, sai do marasmo, viveeeeeeeeeee!! Que nossas agendas (também as interiores) nos permitam muitas vezes a plenitude do nada sorvido como um gole de champanhe, celebrando tudo. Sem culpa.

Canção das Mulheres
Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais. Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta. Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com a minha solicitude, e se ela for excessiva saiba-me dizer isso com delicadeza ou bom humor. Que o outro perceba a minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso. Que se eu faço uma asneira o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes. Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais. Que o outro sinta quanto me dói a ideia da perda, e ouse ficar comigo um pouco, em lugar de voltar logo à sua vida, não porque lá está a sua verdade mas talvez seu medo ou sua culpa. Que se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele, ou que não o amo mais. Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo olha que estou tendo muita paciência com V.! Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingénua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça». In LyaLuft, Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN 978-850-109-376-9.

Cortesia de ERecord/JDACT