quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A Trégua. Primo Levi. «… pois diante da liberdade nos sentíamos confusos, esvaziados, atrofiados, inadaptados. Mas veio a noite: os companheiros adoentados adormeceram, adormeceram também Charles e Arthur com o sono da inocência…»

jdact e wikipedia

O Degelo
«(…) Tais coisas, mal diferenciadas então, e percebidas pela maioria somente como uma repentina onda de fadiga mortal, acompanharam a nossa alegria pela libertação. Por isso, poucos dentre nós correram ao encontro dos salvadores, poucos caíram em oração. Charles e eu permanecíamos de pé, junto à fossa, com os membros lívidos, enquanto outros punham abaixo o arame farpado; depois tornamos a entrar com a padiola vazia, levando a notícia aos companheiros. durante todo o resto do dia nada ocorreu, coisa que não nos surpreendera, uma vez que estávamos fazia tempo acostumados com isso. No quarto, o beliche do falecido Somógyi foi de pronto ocupado pelo velho Thylle, com visível nojo dos meus dois companheiros franceses. Thylle, pelo que eu sabia então, era um triângulo vermelho, um prisioneiro político alemão, e era um dos velhos do Lager; como tal, pertencera de direito à aristocracia do campo: não fizera trabalhos braçais (pelo menos nos últimos anos) e recebera alimentos e roupas da sua casa. Por essas mesmas razões, os políticos alemães eram raramente hóspedes da enfermaria, onde desfrutavam de diversos privilégios: primeiramente, o de fugir das seleções. Pois, no momento da libertação, ele era o único, fora nomeado pelos SS que fugiam para o cargo de chefe do barracão do Bloco 20, de que faziam parte, além do nosso círculo de doentes altamente infectados, a Secção TBC e a Secção Disenteria. Sendo alemão, levara muito a sério essa precária nomeação. Durante os dez dias que separaram a saída dos SS da chegada dos russos, enquanto todos combatiam a última batalha contra a fome, o gelo e a doença, Thylle fizera diligentes inspecções no seu novíssimo feudo, verificando o estado do chão e das tigelas e o número das cobertas (uma para cada hóspede, vivo ou morto). Numa das suas visitas ao nosso quarto, elogiara Arthur, em virtude da ordem e da limpeza que soubera manter. Arthur, que não compreendia o alemão, e muito menos o dialecto saxão de Thylle, respondera-lhe vieux dégoûtant e putain de boche; apesar disso Thylle, daquele dia em diante, com evidente abuso de autoridade, adquirira o hábito de vir todas as noites ao nosso quarto para se servir da confortável privada: era a única, em todo o campo, com a qual tomávamos regularmente todos os cuidados, e a única situada nas proximidades de um aquecedor.
Até aquele dia, o velho Thylle fora um estranho para mim e, portanto, um inimigo; além disso, alguém do poder, e, portanto, um inimigo perigoso. Para as pessoas como eu, vale dizer, para a generalidade do Lager, outras nuances não havia: durante todo o longuíssimo ano transcorrido no Lager, eu jamais tivera a curiosidade ou a oportunidade de indagar a respeito das complexas estruturas da hierarquia do campo. O tenebroso edifício de potências terríveis continuava totalmente acima de nós, e o nosso olhar se dirigia para o solo. Entretanto, foi esse mesmo Thylle, velho militar endurecido por cem lutas pelo seu partido, e dentro do seu partido, e petrificado pelos dez anos de vida feroz e ambígua no Lager, o companheiro e o confidente de minha primeira noite de liberdade.
Durante todo o dia, tivemos muito que fazer para encontrar tempo de comentar o acontecimento, que sentíamos realmente marcar o ponto crucial de toda a nossa existência; e talvez, inconscientemente, inventávamos o que fazer, justamente com o objectivo de não ter tempo, pois diante da liberdade nos sentíamos confusos, esvaziados, atrofiados, inadaptados. Mas veio a noite: os companheiros adoentados adormeceram, adormeceram também Charles e Arthur com o sono da inocência, pois estavam no Lager havia um mês, e ainda não tinham sorvido o veneno: eu, sozinho, embora exausto, não encontrava o sono, por causa do esgotamento da doença. Doíam-me todos os membros, o sangue pulsava convulsivamente no crânio, e eu me sentia invadir pela febre. Mas não era apenas isso: como se um dique houvesse desmoronado, logo quando as ameaças pareciam desaparecer, quando a esperança de voltar à vida deixava de ser considerada absurda, eu me encontrava subjugado por uma dor nova e mais vasta, antes sepultada e relegada às fronteiras da consciência, por outras dores mais urgentes: a dor do exílio, da casa distante, da solidão, dos amigos perdidos, da juventude perdida, e da multidão de cadáveres nas proximidades». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.

Cortesia de ETeorema/JDACT