terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Frida. Biografia. Hayden Herrera. «Em 1936, Frida retratou o seu lugar de nascimento e a sua árvore genealógica na deliciosamente estranha e extravagante pintura Meus avós, meus pais e eu»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Casa Azul na rua Londres
«(…) De facto, Limantour escolheu bem: Guillermo Kahlo era um técnico obstinado, com um ponto de vista teimosamente objectivo acerca daquilo que via; nas suas fotografias, assim como nas pinturas da sua filha, não há lugar para truques, efeitos nem ofuscações românticas. Ele tentava transmitir o máximo possível de informações sobre a estrutura arquitectónica do lugar que registava com suas lentes, seleccionando cuidadosamente o seu ponto de observação e usando luz e sombra para delinear a forma. Um anúncio publicitário do seu trabalho, impresso em inglês e espanhol, prometia: Guillermo Kahlo, especialista em paisagens, edificações, interiores, fábricas etc., tira fotografias sob encomenda na capital ou em qualquer outro lugar da República. Embora ocasionalmente fizesse belos retratos de membros do governo Díaz e da sua própria família, ele afirmava não querer fotografar pessoas, pois não desejava melhorar o que Deus criara feio. Difícil afirmar se Guillermo tinha consciência do humor contido numa frase como essa, mas, quando os contemporâneos de Frida fazem referência ao pai da artista, quase sempre é das suas declarações que eles se lembram, e em geral são máximas a um só tempo directas, sardónicas, e, de maneira maravilhosamente fria e nem um pouco emotiva ou sentimental, engraçadas.
Isso não quer dizer que o pai de Frida fosse um homem alegre, de coração leve. Pelo contrário, era homem de poucas palavras, cujos silêncios tinham uma poderosa ressonância, e envolto numa aura de amargura. Ele jamais se sentiu realmente à vontade no México e, embora ansiasse por ser aceito como mexicano, nunca perdeu o forte sotaque alemão. Com o passar dos anos, foi se ensimesmando cada vez mais. Frida se recordava de que o pai tinha apenas dois amigos. Um era um velho largote [homem alto], que sempre deixava o chapéu em cima do armário. Meu pai e o velho passavam horas tomando café e jogando xadrez. Em 1936, Frida retratou o seu lugar de nascimento e a sua árvore genealógica na deliciosamente estranha e extravagante pintura Meus avós, meus pais e eu. Ali ela aparece como uma menininha (dizia ter por volta de dois anos de idade), nua, calma e controlada, de pé no pátio da sua casa azul; a sua cadeirinha está a seus pés, e ela segura uma fita vermelha, o seu sangue, que escora a árvore genealógica com a mesma facilidade de um balão preso a um barbante. O retrato dos pais é baseado n sua fotografia de casamento, em que o casal flutua no céu feito dois anjos, emoldurados por uma auréola de nuvens. Essa antiquada convenção fotográfica deve ter agradado a Frida: na sua tela, ela aninha o retrato dos avós em nuvens semelhantes. Os avós maternos de Frida, o índio Antonio Calderón e a gachupina (de origem espanhola) Isabel González y González, estão situados acima da mãe da pintora. Do lado paterno há um casal europeu, Jakob Heinrich Kahlo e Henriette Kaufmann Kahlo. Acerca da característica física mais notável de Frida não pode pairar dúvida: ela herdou da avó paterna as sobrancelhas espessas e unidas. A pintora dizia ser fisicamente parecida tanto com o pai como com a mãe: tenho os olhos do meu pai e o corpo da minha mãe. Na tela em questão, Guillermo Kahlo tem um olhar inquieto, penetrante, o mesmo olhar que, em toda a sua intensidade perturbadora, apareceria novamente nos olhos da sua filha.
Frida copiou fielmente da fotografia original cada prega, cada dobra, cada costura e cada laço do vestido de casamento da mãe, criando um jocoso realce para o feto cor-de-rosa, já bastante desenvolvido, que ela situou na virginal bainha branca. O feto é Frida; o facto de que pode também ser uma referência à possibilidade de que sua mãe já estava grávida quando se casou é uma ilustração do típico prazer que Frida sentia pelos múltiplos significados. Abaixo do feto há um falso retrato de casamento: um enorme espermatozoide, seguido por um cardume de competidores menores, penetra um óvulo: Frida no momento da concepção. Ao lado, outra cena de fecundação: um cacto carmesim, em formato de U, abrindo-se para receber o pólen carregado pelo vento.
Frida situa a sua casa não no subúrbio, mas na planície salpicada de cactos do platô central mexicano. À distância se estendem montanhas rasgadas por ravinas, invariavelmente a mesma paisagem dos seus autorretratos; logo abaixo da imagem de seus avós paternos vê-se o oceano. Os avós mexicanos são simbolizados pela terra, Frida explicou; os avós alemães, pelo mar. Contíguo à casa da família Kahlo, há um humilde lar mexicano; além, num campo, vê-se uma habitação ainda mais primitiva, uma choça indígena de adobe. Numa visão infantil, a artista incluiu todo o distrito de Coyoacán na sua própria casa, e depois apartou-a da realidade, num ermo. A sensação é que Frida está de pé no meio da casa, no meio do México, no meio do mundo». In Hayden Herrera, Frida, A Biografia, 1983, tradução de Renato Marques, Editora Globo, 2011, ISBN 978-852-505-353-4.

Cortesia de EGlobo/JDACT