domingo, 12 de janeiro de 2020

Inês. Maria Fialho Gouveia. «A pequena Castro era feliz. Repetia-o sem hesitações. Só lhe carecia, por vezes, alguém da sua idade e da sua classe com quem brincar, que não fosse filho de uma serviçal»

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As Encostas de Albuquerque
«(…) Retirada da mãe, por deliberação de Pedro Castro, que preferiu ver a filha criada pelo filho de um rei, Inês, ainda criança de colo, encontrou no peito da senhora de Albuquerque o desvelo de uma verdadeira mãe, não guardando memória ou mágoa da troca de braços que a vida lhe impusera. A dedicação que a prima direita do seu pai tinha por si enlaçara-as num amor inseparável, que prometia uni-las para sempre. Alta e direita, de cabelos já embranquecidos pelo tempo e olhos escuros como a noite, dona Teresa Martins Meneses era senhora daquela beleza distinta que só a idade concede. Chamada a si a função de educadora, impunha o seu respeito, incutindo à pupila rígidas normas e seculares princípios, e, contudo, nunca a ternura desaparecia dos olhos com que a fitava, quer quando a repreendia, como quando a mimava com o carinho.
Tal como a ditosa parente, também aquela terra da Raia que a acolhera como filha se lhe aninhara no génio e no coração. Conhecia cada pedra dos altos muros daquela alcáçova como as palmas das mãos. E sentia-as como se nelas lesse ensinamentos e lhe ouvisse testemunhos de vidas passadas. Era frequente vê-la a passar com os dedinhos na aspereza das paredes acasteladas, atenta a um qualquer detalhe que antes lhe tivesse escapado. Tinha àquele lugar um amor tamanho, que se diria estar-lhe intimamente ligada, porventura, em muitas voltas do destino. Da perfeição, porém, falava-lhe não só o abraço do seu alcácer, como também a beleza das suas vistas, que lhe sorriam ao olhar.
Era maravilhada com quanto a rodeava que a jovem galega, ora se passeava pelos seus pátios ajardinados, abrigados à sombra de ciprestes, ora corria alegremente pela colina abaixo, colhendo flores silvestres, até onde a cintura da muralha lho permitisse. Albuquerque, que já traduzia um pouco de si também, entranhara-se-lhe na alma e no corpo. Inês ajudara dona Teresa a escolher os veludos escarlates, ostentando a ouro o brasão da família, que hoje enobreciam as janelas do salão nobre e lhe aqueciam a frieza das pétreas paredes. Amava, não se cansava de dizê-lo, cada nó da madeira da longa e nobre mesa, a negrura dos seus bancos corridos, polidos de muitos anos, as armas do primo português expostas ao alto, a riqueza dos candelabros que a alumiavam quando o breu a envolvia. A sua predilecção, porém, os móveis que mais estimava naquele seu grandioso e magnífico claustro, eram as arcas aferrolhadas em que conservava algumas das suas vestes e peças bordadas do enxoval, a par de outros pertences. Os excelentes baús de madeiras nobres tinham para si algo de misterioso e superior, fazendo-a sentir-se uma princesa, que, na prática e não no título, era, de facto. Num desses ricos cofres guardava com orgulho e ternura um pequeno retrato a óleo que dom Afonso Sanches encomendara a um pintor local, sem fama ou importância, do outro lado da fronteira, mas provido de um grande dom para a arte de reproduzir rostos. Nas tardes mais quietas e entediantes, Inês levantava a pesada tampa da arca, procurava no interior esse seu pequeno tesouro, e sentava-se na banqueta que lhe ficava próxima, a admirar a sua imagem traçada a tinta.
A pequena Castro era feliz. Repetia-o sem hesitações. Só lhe carecia, por vezes, alguém da sua idade e da sua classe com quem brincar, que não fosse filho de uma serviçal. Tinha um irmão, Alvaro, filho da mesma mãe, um pouco mais novo, mas a quem raramente revia, vivendo como ele vivia na Galiza, sob a alçada do sério pai. E assim, nas proximidades e com avoengos antepassados, restavam-lhe alguns fidalgos menores, que tinham os seus palácios na cidade, mas com cujas filhas pelo inferior estatuto, ou por mera protecção, dona Teresa não a deixava privar». In Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-884-372-2.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT