segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Crisfal. Cristóvão Falcão. «Despois de ontem deixar de vos contar os meus males, fui-me cá baixo geitar no mais baixo destes vales…»

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«[…]
XXIII
«Vida de tam longos males,
como não cansa de ser!
que eu canso já de viver,
e o eco destes vales
cansa de me responder.
As ribeiras, em eu vê-las,
correm mais do que é seu foro,
entrando meu chorar nelas;
e pois ajudam meu choro,
quero só falar com elas.

XXIV
Companheiras do meu mal,
águas que d’alto correis,
onde caís desigual,
parece que me dizeis:
Porque não choras, Crisfal?
Contar-vos quero, amigas,
o que esta noute sonhei,
com o qual tal dor me dei,
que minhas muitas fadigas
em mais fadigas dobrei.

XXV
Despois de ontem deixar
de vos contar os meus males,
fui-me cá baixo geitar
no mais baixo destes vales,
antre pesar e pesar;
onde, despois que aos ventos
descobri minhas paixões,
gastadas muitas rezões,
mudei os meus pensamentos
em minhas contemplações.

XXVI
Contente de descontente,
a noute sendo calada,
como é certo em quem sente,
não ficou cousa passada
que me não fosse presente.
Vindo-me à memória dar,
quando andava com o gado,
ter com Maria sonhado,
fez-me o dormir dessejar,
de mim pouco dessejado».
[…]
In Cristóvão Falcão, Crisfal, Coleção Textos Literários, Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa, 2ª. Edição, Lisboa, 1962.

Cortesia de BVELPortuguesa/JDACT