quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A Vida Secreta das Princesas Árabes. Jean Sasson. «Em certa ocasião, disse-me que a viagem representara o fim da sua juventude, pois era demasiado nova para compreender o que a esperava no final da longa deslocação»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A minha mãe casou com o meu pai aos doze anos. Ele tinha vinte. Estava-se em 1946 o ano em que a Segunda Guerra Mundial interrompera a produção petrolífera, O petróleo, a força vital da Arábia Saudita do presente, ainda não trouxera, na altura, grande riqueza à família de meu pai, os AISaud, no entanto o impacto que tinha sobre os seus membros fazia-se sentir em pequenos pormenores. Os chefes das grandes nações haviam começado a prestar vassalagem ao nosso rei. Winston Churchill, o primeiro-ministro inglês, presenteara o rei Abdul Aziz com um luxuoso Rolls Royce. Verde-metalizado, com um banco traseiro que fazia lembrar um trono: o automóvel refulgia como uma jóia ao sol. Apesar de imponente, algo no automóvel o desiludiu nitidamente, pois o rei ofereceu-o, depois de o inspeccionar, a Abdullah, um dos seus irmãos preferidos. Abdullah, que era tio e amigo chegado de meu pai, colocou-lhe o automóvel à disposição para a sua viagem de lua-de-mel a Gidá. Ele aceitou, para grande deleite de minha mãe, que nunca conhecera semelhante meio de transporte. Em 1946 deixando para trás séculos incontáveis , o camelo era o meio de transporte habitualmente usado no Médio Oriente. Passar-se-iam três décadas antes de o saudita médio trocar o dorso de um camelo pelo conforto de um automóvel. Assim, os meus pais atravessaram alegremente o deserto, durante sete dias e sete noites, até chegarem a Gidá. Malogradamente, o meu pai, na sua pressa em partir de Riade, esquecera-se da sua tenda; este descuido e a presença constante de vários escravos levou a que o seu casamento só fosse consumado depois de chegarem a Gidá.
Aquela viagem poeirenta e cansativa tornou-se uma das recordações mais felizes de minha mãe. Depois dela, dividiu sempre a sua vida entre a altura anterior à viagem e a altura a seguir à viagem. Em certa ocasião, disse-me que a viagem representara o fim da sua juventude, pois era demasiado nova para compreender o que a esperava no final da longa deslocação. Seus pais haviam morrido durante uma epidemia de febre, deixando-a órfã aos oito anos. Aos doze casara com um homem temperamental, propenso a crueldades tenebrosas. Não estava preparada para fazer outra coisa na vida que não fosse servi-lo. Após uma breve estada em Gidá, meus pais regressaram a Riade, pois era aí que a família patriarcal dos AISaud dava continuidade à sua dinastia. O meu pai revelou-se um homem impiedoso, e, como não podia deixar de ser, minha mãe tornou-se uma mulher melancólica. A sua união trágica acabou por dar origem a dezasseis filhos, dos quais onze sobreviveram a infâncias perigosas. Hoje, as suas dez filhas levam vidas controladas pelos homens com quem casaram. O único filho sobrevivente, um importante príncipe e homem de negócios saudita com quatro esposas e numerosas amantes, leva uma vida de grande fausto e prazer.
As minhas leituras levaram-me a saber que sucessores mais civilizados de culturas antigas sorriem diante da ignorância dos seus antepassados, à medida que a civilização avança, o medo da liberdade individual é ultrapassado pelo esclarecimento. A sociedade humana apressa-se, ansiosamente, a ir ao encontro do saber e da mudança. Surpreendentemente, na terra dos meus antepassados pouco mudou desde há um milhar de anos. É certo que surgiram edifícios modernos, os cuidados de saúde mais avançados estão à disposição de todos, no entanto a consideração pelas mulheres e pela sua qualidade de vida continua a ser alvo de um encolher de ombros displicente. É incorrecto, porém, atribuir à nossa fé islâmica a responsabilidade pela posição subalterna que a mulher ocupa na nossa sociedade. Embora o Alcorão determine que a mulher vem a seguir ao homem, muito à semelhança da Bíblia, em que o homem é autorizado a exercer o seu domínio sobre a mulher, o nosso profeta Maomé só preconizou o bem e a justiça para quem pertence ao meu sexo. Os homens que vieram depois de Maomé é que preferiram seguir os costumes e tradições da Idade das Trevas, em vez de seguirem as palavras e o exemplo do Profeta. Este desprezava a prática do infanticídio, um costume vulgar no seu tempo, segundo o qual as famílias se livravam das meninas indesejadas. As próprias palavras do Profeta transmitem veementemente a sua preocupação perante a possibilidade de as mulheres serem alvo de maus tratos e indiferença: que Deus conceda o Paraíso a quem teve uma filha e não a enterrou viva nem a desprezou ou preferiu os filhos varões a ela». In Jean Sasson, A Vida Secreta das Princesas Árabes, 2012, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-674-1.

Cortesia de EASA/JDACT