sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Gama Caeiro. A Assistência em Portugal no Século XIII e os cónegos regrantes de S. Agostinho: «Entre as virtudes que os cónegos, do latim canonicus, haviam de cultivar, avultavam, além da indispensável obediência, a humildade e a caridade. E o perfeito exercício desta exigia a renúncia a toda a propriedade privada»

Cortesia de visita2009

«Já depois da sua morte, ocorrida em 430, foi redigida a chamada «Regula ad Servos Dei», que alguns remontam ao começo do século VI, mas que, segundo parece, é mera adaptação da «Carta 211 de Santo Agostinho e compilação dos «princípios gerais de orientação prática» dispersos pela obra augustiniana.

A primeira e máxima exigência era a de uma perfeita comunhão espiritual e de bens, à maneira das primitivas comunidades cristãs de Jerusalém, seguindo o exemplo dos apóstolos.
Entre as virtudes que os cónegos, do latim canonicus, haviam de cultivar, avultavam, além da indispensável obediência, a humildade e a caridade. E o perfeito exercício desta exigia a renúncia a toda a propriedade privada:
  • «Abstineamus ergo nos, fratres, a possessione rei privatae».
Seria moroso -e dispensável agora - historiar a longa evolução da renúncia à propriedade, como forma de despojarnento e de pobreza. Basta saber que era este o filão espiritual que alimentava, na origem, as canónicas portuguesas.
A corroborar essa exigência em mosteiros de regrantes, encontramos, por exemplo, as constituições promulgadas no capítulo convocado em 1162, pelo segundo prior-mor de Santa Cruz, D. João Teotónio, cujas disposições se destinavam à canónica de Lisboa, ligada por vínculo espiritual de protecção ao Mosteiro de Coimbra e). Aí se prescreve a fuga a toda a apropriação pessoal de bens.

Cortesia de calcanhardemaracuja

«De proprio modis omnibus fugíendo», mas, particularidade a notar, a prática, mesmo das virtudes e actos que constituem o travejamento tradicional da observância monástica, a obediência, a castidade, a pobreza, o jejum, o silêncio, assume aqui uma expressão nova, enquanto impõe, não apenas prosseguir no louvor a Deus e na contemplação, objectivos essenciais da vida monástica, mas também realizar o «munus» sacerdotal, de homens inseridos na comunidade, e que prestavam especial atenção, por disposição da Regra, à «cura animarum» e ao serviço da Igreja.

Não é este o lugar próprio para examinar os numerosos e complexos problemas, ainda incompletamente averiguados, da «Regula Sancti Augustini» ou das diversas disposições conciliares, legislativas, disciplinares, dos usos, dos leccionários, dos «libri capituli» ou capituleiros, dos costumeiros monásticos que se têm de considerar neste estudo.
Mas quereria apenas anotar, como observação de princípio, que o desprezo ou minimização destes elementos - os textos, quer de espiritualidade, quer de natureza legislativa - levaria a não compreender, depois, os modelos e a intenção específica que estiveram presentes no momento de dar concretização às práticas assistenciais.

Cortesia de teleios

No mesmo século, a espiritualidade que enforma os textos que servirão de fonte de inspiração concreta para a elaboração do ideal da pobreza do religioso e para as obras da caridade é diferente nos regrantes, nos cistercienses, ou nas ordens recém-fundadas dos mendicantes, dominicanos e franciscanos. Desprezar estes aspectos seria confundir, em grande parte, os planos do estudo da assistência durante a Idade Média.

O estudo do «léxico», do conceito, da «imagem» que certa época formava do pobre e da assistência ficaria muito incompleto se - além de outras fontes literárias, como anais e memórias coetâneas -, não incluísse o «sermonário», sabido qual o valor didáctico que possuía o sermão na Idade Média. Representa assim um manancial privilegiado, sob este ângulo de investigação, a vigorosa e significativa construção doutrinal da pobreza que um pregador português nos deixou, e que, pela sua filiação intelectual, era ainda, e sobretudo -não obstante a posterior formação franciscana - um «cónego regrante: António de Lisboa.
Seria todavia improcedente o estudo que se limitasse apenas à consideração dos textos atrás referidos. Para o caso concreto das corporações de regrantes em Portugal, a partir do final do século XII, conserva-se documentação muitíssimo valiosa, que pode lançar luz completamente nova sobre a assistência aos pobres, na Idade Média». In A Pobreza e a Assistência aos Pobres na Península Ibérica durante a Idade Média, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Históricos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974.

Cortesia de Imprensa Nacional-Casa da Moeda/JDACT