terça-feira, 16 de agosto de 2011

J. Oliveira Martins. História de Portugal: A Separação de Portugal. «A condessa, infanta ou rainha de Portugal porque de todos estes títulos usou era também sagaz e astuta, qualidades que o filho veio a herdar com o sangue. Não tinha o ânimo varonil de uma amazona, mas tinha a perspicácia e o juízo próprios dos príncipes desses tempos. Sabia moderar a cólera e engolir afrontas como a de Viseu, quando não podia vingar-se delas»

Cortesia de wikipedia

«Morrendo, o velho conde português, ao sitiar Astorga, chamou para junto de si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições:
  • «Filho, toma esforço no meu coração; Toda a terra que eu deixo, que é de Astorga até Leão e até Coimbra, não percas dela coisa nenhuma, que eu a tomei com muito trabalho. Filho, toma esforço no meu coração! E sê semelhante a mim, e sê companheiro dos fidalgos e dá-lhes todos os seus direitos, aos concelhos. Filho, toma esforço no meu coração!».
Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituída nas suas duas faces paralelas e correlativas: a nobreza, os concelhos «E depois que houve castigado o filho destas coisas e outras muitas que aqui não dizemos, morreu».
A viúva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde galego Fernando Peres, deu com os seus escândalos pretexto para uma revolta, que pôs em risco a conservação dos vastos domínios herdados de seu marido. Assim também sucedera a D. Urraca, perdida de amores pelo conde de Trava. Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente dissolutos da Idade Media a mancebia não era caso que ofendesse o pudor particular nem público:
  • os amantes das princesas ofendiam, porém, o ciúme dos seus colegas em fidalguia; e o poder efectivo de que um deles dispunha, à sombra do amor que o preferira, enchia de inveja e ódio os companheiros.

D. Teresa
Cortesia de wikipedia

As memórias do tempo retratam-nos D. Teresa como uma mulher sagaz, viva e bela. A astúcia combinava-se no seu espírito com um amor que a levava a comprometer-se, como diríamos na nossa linguagem moderna. Uma vez, na catedral de Viseu, apresentou-se com o amante, no meio da igreja apinhada de povo, e em frente do prelado que pregava.
A autoridade dos bispos corria então parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de Viseu não duvidou dizer à rainha, em voz alta, do púlpito ou dos degraus do altar, que abandonasse o amante ou se casasse: era um escândalo aquela união, uma vergonha proceder de tal modo. A condessa, vermelha de cólera e confusão, fugiu rapidamente da igreja seguida pelo amante.
Por que não sucederia ao escândalo a vingança, para não quebrar a constante aliança da impudicícia e da crueldade, dominantes na Idade Média? Porque naturalmente as invectivas do bispo traduziam a força do partido dos invejosos e rebeldes, que já faziam do moço filho de D. Henrique um pendão de revolta contra a viúva apaixonada.

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Nem por tão pouco se afligiria a consciência do bispo, pois o clero demasiado ouvia também os conselhos da carne, e os amores sacrílegos eram tão frequentes como os amores livres ou adulterinos. A princesa não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais tarde a vingança. Beijos lascivos, perfídias indignas e barbaridades ferinas, eis os elementos que constituíam a mulher da Meia Idade. Os dotes femininos eram naturalmente pervertidos por um ambiente de brutalidade anárquica nos sentimentos e nas acções: e, quando a mulher dispunha da autoridade e da força, ou, como a Fredegonda dos Merovíngios, cevava em sangue a sua fera natureza, ou satisfazia numa impudicícia desesperada as necessidades sensuais do seu temperamento. Nem a crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza, que neles dá o predomínio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos nas mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse subalternizada à ambição e aos cálculos políticos, ou à bravura e às façanhas guerreiras.

Não se imagine, porém, a mulher da Idade Média um ser apenas formado de crueldade e amor; menos se suponha D. Teresa uma semelhante criatura.
A condessa, infanta ou rainha de Portugal porque de todos estes títulos usou era também sagaz e astuta, qualidades que o filho veio a herdar com o sangue. Não tinha o ânimo varonil de uma amazona, mas tinha a perspicácia e o juízo próprios dos príncipes desses tempos. Sabia moderar a cólera e engolir afrontas como a de Viseu, quando não podia vingar-se delas. O amor traduzia apenas uma exigência dos sentidos, deixando livre e independente a acção da inteligência». In J. Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães e Cª Editores, 16 edição 1972.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT