terça-feira, 20 de março de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «A curiosidade humana pelas origens deu lugar a um mito bíblico, o mito da “Torre de Babel”, segundo o qual a variedade das línguas no mundo é uma consequência da rivalidade entre os deuses e os homens. A incomunicabilidade entre os idiomas é sentida como um mal e como um castigo divino»

jdact

A Torre de Babel
«Mistério é aquilo que os homens não conseguem explicar: explicar as coisas na totalidade e mostrar porque e para que nascem, como se desenvolvem e como e porque acabam e o que resta depois delas. Sendo assim, é evidente que nada se pode explicar, a não ser fragmentariamente, e que tudo está rodeado de mistério, embora esta palavra se use cada vez menos.
Por detrás de toda a origem há uma outra origem que falta conhecer. Depois do fim, mais outro fim. Além disso, há o problema da finalidade para que as coisas foram feitas, e só pode haver finalidade quando há intenção, e só existe intenção quando há subjectividade. O homem, que se define a si próprio como animal racional, constrói a casa para nela se abrigar.

Ele tem consciência disso e essa consciência tornou-se uma propriedade da espécie. Mas semelhante explicação não é aplicável ao pássaro que fabrica o ninho, e que consideramos um animal irracional. O homem tem consciência da intenção com que pratica as acções. Mas poucas acções no universo são praticadas por ele e para ele, e dessas desconhece a motivação. Historiadores e filósofos têm-se debruçado sobre a lógica da história sem qualquer resultado positivo. É outro mistério. E os homens vivem no meio de guerras e de catástrofes que se sucedem sem que haja razão para elas, como notou Voltaire no seu “Candide”, que é uma sátira à teoria da harmonia universal.
O homem vive rodeado de mistério mas nunca desistiu de o ‘explicar’. A religião começa pelo sentimento do sagrado ligado a certos fenómenos da natureza que dão lugar a mitos. ‘Mito’ significa, à letra, “estória”, “ficção”.
Os mitos, que procuram distanciar e objectivar o sentimento do sagrado, estão na origem das religiões. Há vários mitos das origens entre os povos semitas e os arianos. Um deles é o de Adão e Eva, outro o da guerra entre deuses celestes e os gigantes da Terra.
A religião tem a sua raiz na afectividade. Mas a seu lado, ou na sua continuidade, a especulação intelectual tenta também penetrar este problema das origens e dos fins. É disso que se ocupa a metafísica, palavra inventada por Aristóteles que significa ‘o que está para além da (meta) natureza (physis)’. A metafísica ocupa-se de problemas que não têm solução, e nisso se distingue da ciência.

jdact

A civilização chinesa, segundo muitos autores, não se ocupa da ciência, para a qual, de resto, a sua língua é pouco apropriada. A ciência nasceu na cultura grega. A China legou-nos técnicas artesanais e não um método de raciocínio científico. É curioso que esta incompatibilidade coincida com a negação para a teologia. Para o chinês, a ideia de um Deus transcendente, autor da natureza, não é concebível. Deus e a natureza na cultura chinesa são inseparáveis, e os jesuítas que tentaram missionar o Japão no século XVII da nossa era traduziram imperfeitamente a ideia de Deus por um emblema que se aplica ao céu natural e visível.
As religiões que se praticam na China e no mundo chinês vieram de fora, como o hinduísmo e o budismo, e sofreram alterações apropriadas à cultura que as importou.

Até hoje, a diversificação das línguas no mundo é incompreensível, porque, sendo a língua um meio de comunicação, elas se separaram até se tornarem um obstáculo à comunicação. Por isso, não há até hoje uma explicação científica da diversidade das línguas: em certos casos, os cientistas conseguem averiguar o “como” esse processo se desenvolve, mas nunca se percebeu o “porquê” dele. Desde o princípio do século XIX conhecem-se as regras segundo as quais o indo-europeu primitivo deu lugar às línguas germânicas, latinas, eslavas e célticas, ao grego, cada uma das quais se foi diversificando. Qual foi a necessidade desse processo? A curiosidade humana pelas origens deu lugar a um mito bíblico, o mito da “Torre de Babel”, segundo o qual a variedade das línguas no mundo é uma consequência da rivalidade entre os deuses e os homens. A incomunicabilidade entre os idiomas é sentida como um mal e como um castigo divino.
Esta situação que resulta da variedade das línguas obriga a um trabalho de tradução quando se quer ter uma obra escrita num idioma que não conhecemos ou que conhecemos imperfeitamente. Mas apesar dos esforços práticos e teóricos desenvolvidos nesse sentido, continua a ser verdadeiro o ditado italiano “traduttore, traditore”. Uma tradução é sempre uma traição ao original e isto tanto mais quanto mais forte é a qualidade artística desse original.

Uma tradução de um poema é sempre uma falsificação desse poema traduzido. Só por um acaso muito improvável pode haver uma identificação espiritual entre o poeta e o seu tradutor». In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT