terça-feira, 6 de março de 2012

A nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada. Fernando Pessoa. «Urge que, pondo de parte misticismos de pensamentos e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo social, com raciocínios e cingentes análises»

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«Ao movimento literário representativo e peculiar da nascente geração portuguesa tem sido feito pela opinião pública o favor de o não compreender. E esse movimento que, sobretudo na poesia, com crescente nitidez acusa a sua individualidade representativa, não tem sido compreendido, porque uma parte do público, a que tem mais de trinta anos, está inadaptalizável, por já velha, a esse movimento, e consta, perante ele, de incompreendedores natos; porque outra parte, ou por circunstâncias de bacharelosa espécie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e estéril entusiasmo, gerados por absorção na intensa e mesquinha vida política nossa, está colocada num estado de pseudo-alma descritível como sendo de incompreendedores de ocasião; e porque a outra, restante, aquela de quem são os novos poetas e literatos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia, não tomou ainda consciência de si como o que realmente é, porquanto o movimento poético actual é ainda embrião quanto a tendências, nebulosa quanto a ideias que de si ou de outras coisas tenha.
Urge que, pondo de parte misticismos de pensamentos e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo social, com raciocínios e cingentes análises se penetre na compreensão do actual movimento poético português, se pergunte à alma nacional, nele espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação, perante a sociologia, desse movimento literário e artístico.

Desenho de Almada Negreiros
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Em primeiro lugar, é evidente que aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser representativo do estado social da época e do país em que aparece. Porque uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que/ por ser comum a esses escritores, deve forçosamente ter raiz no que de comum eles têm, e isso é a época e o país em que vivem ou em que se integram.
E se a literatura é fatalmente a expressão do estado social de um período político, a ‘fortiori’ o deve ser, adentro da literatura, o género literário que mais de perto cinge e mais transparentemente cobre o sentimento e a ideia expressos, e esse género literário é a poesia. Não é isto, porém, que de momento importa.
Saber pela literatura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tomar presente ao seu raciocínio. O que nos ocupa é saber se a literatura nos poderá ser um indicador sociológico, se nos pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o país em que essa literatura é actual. E é precisamente isto que a ‘priori’ se não pode imaginar. Reportemo-nos, pois, à evidência analisada dos factos.

Cortesia de poesiaincompleta

Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos essenciais e simplificando, para não sermos longos, as condições da análise projectada.
Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de ‘alma’ isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico/ mas ‘novos moldes novas ideias gerais’, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguém compara a grandeza ruinosa de Roma à super-grandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu.
Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas fórmulas invitais dos códigos, uma memória de uma glória; a Grécia sobrevive-se nos nossos ideais e nos nossos sentimentos.
Servir-nos-ão de material para a análise duas nações apenas, a Inglaterra e a França; e isto porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma influência civilizacional acentuada, o problema se limita simplesmente à análise que desejamos fazer, sem impor, como imporia o estudo de qualquer nação ou mais complexa, ou mais afastada no tempo, uma prévia análise diferencial. A escassez do material, porém, importa apenas quando é superficial a análise; porque, se “pour expliquer un brin de paille il faut démonter tout le système de l'uniaers”, ao raciocinador ideal bastaria, visto que o sistema do universo se acha logicamente contido no ‘brin de paille’, analisá-lo bem, a ele ‘brin de paille’, para deduzir o sistema do universo». In Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada, Editorial Nova Ática, 2006, ISBN 972-617-193-8. 
Cortesia de Editorial Nova Ática/JDACT