segunda-feira, 12 de março de 2012

Tempo e Poesia. Eduardo Lourenço. Poética Mítica. «O que nem filosofia nem ciência nos concedem, um só verso, um daqueles que Mallarmé dizia ‘interminavelmente belo’ no-lo oferece, porque nele regressamos e nele somos o tempo que em tudo o mais esquecemos mas que jamais nos esquece»

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Esfinge ou a poesia
«Em face da sua imagem ou da sua sombra, o homem realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites. A aventura misteriosa de Narciso repete-se desde a infância em frente de cada espelho. Gostaríamos de nos tocar do lado de lá sem quebrar o vidro nem turvar a água. E como Peter Schlemmil pouco importaria vender a sombra ao Diabo, se com isso o tempo se detivesse sobre o nosso rosto e pudéssemos ser, fosse um só instante, a absurda criatura imóvel e transparente que nos sonhamos.
A aventura é impossível pois a imagem e a sombra são reais. Isso significa que um mundo nos cerca, nos divide e nos limita. Jamais seremos esse que pode ver-se face a face. Mas o jogo é demasiado sério para o perdermos ao primeiro gesto. Se não nos podemos olhar procuremos entre os monstros, os demónios e os deuses que criamos, esse rosto impassível que o vento e a chuva de cada dia não nos consentem.
Foi assim que o encontro com um monstro nos ofereceu aquilo que as divindades excessivamente magníficas e as potências infernais não nos puderam dar: a expressão mais rara dum ser que não chega ao fim dos próprios braços, como é um homem. É impossível reconhecer um homem em Anúbis de focinho de chacal ou uma mulher em Ísis, a virgem-mãe de face de lua. Mas é fácil reconhecê-lo nesse ser ambíguo que os antigos Egípcios talharam na rocha do deserto e os Gregos ágeis deixaram errar perigosamente pelos caminhos de Tebas a Corinto.
Espírito da Terra capaz de romper através da vida obscura da inércia animal para oferecer uma face de Deus ao apelo universal da luz, a Esfinge é encarnação perfeita da ambiguidade radical da situação humana. E ao mesmo tempo a realização plástica mais concreta do acto original do homem: a poesia.

Cortesia de fioredemel

Chamaram-lhe misteriosa e enigmática. E ela não é senão ambígua. O seu mistério é o mesmo do homem: não poder ser para outro homem um objecto como todos os outros e, sobretudo, não ser jamais para si próprio senão sujeito, vida original através da qual ascendem à existência todas as coisas que contemplamos: mundo, história, valores e os outros homens.
É todavia difícil suportar continuamente a ideia de que o mundo, a história, os valores e os outros são para nós a criação do acto de liberdade pelo qual os aceitamos ou combatemos. A tentação suprema é a de nos despirmos dessa terrível liberdade, alienando-nos para descansar no mundo dos objectos ou no mundo dos deuses. Fácil é ser definitivamente animal ou deus. Difícil é assumir a realidade monstruosa de superar um e combater com outro, como é uma esfinge, como é um homem.
Como admirarmo-nos se a história terrestre de esfinge encerra a mesma tentação? Criatura humana, mal saída das nossas mãos, apresentou-se-nos como a imagem definitiva do mistério e do enigma. Criatura nossa, colocou-se um dia nas encruzilhadas de Tebas para nos exigir a única palavra necessária da salvação humana. Porquê? Por que motivo um rosto silencioso riscado dum sorriso nos confinou com a mais obscura das dificuldades? Por que razão uma face de mulher se revestiu da crueldade necessária para nos devorar? Como uma obra de homem, um homem, se tornou deus para outros homens? Como um deus humano se tomou na essência mesma do terror e da morte? Pode a poesia ser mortal? Interroguemos a mais antiga, a esfinge silenciosa. Façamos exactamente o contrário do que fizeram os homens que depararam com o seu sorriso e imaginaram que era esse sorriso quem os interrogava. Ora a Esfinge não é uma interrogação senão no espírito dos arqueólogos (do coração e da inteligência, não dos verdadeiros, que são magníficos poetas). No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta.

Cortesia de muraldosescritores

A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. E aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes.
Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia. Ele existe para homens incapazes de acolher esse silêncio original. Gente que não compreende, enquanto não substitui a irredutível figura de uma obra, a ímpar forma de um poema, por uma palavra, por um discurso. Só o criador sabe que no lugar de uma forma não havia outra forma e que o dicionário é impotente para os filólogos quanto mais para os poetas. Mas há os outros, os arqueólogos do coração e da inteligência, ‘outros’ que podem ser os próprios poetas quando deixam de estar vigilantes. Assim aconteceu ao criador da Esfinge (daquilo a que os ‘outros’ chamariam Esfinge).
É humano sentir-se cansado ao fim duma obra. O nosso poeta cansou-se e adormeceu entre as patas poderosas da sua criatura. Durante a noite o vento do deserto (e todos os criadores serão conduzidos ao deserto em certas horas, como o Cristo) arrastou a areia e cobriu com ela as raízes da criatura e o seu criador». In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003, ISBN-972-662-907-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT