terça-feira, 13 de março de 2012

Santa Maria na História e na Tradição Portuguesa. Miguel de Oliveira. «O velho solar lusitano orgulha-se de ser conhecido por ‘Terra de Santa Maria’. No começo das ‘Conquistas’, criámos a invocação de Santa Maria de África. No decurso dos ‘Descobrimentos’, quando se avistava uma ilha ou enseada em dias festa da Virgem, logo era ofertada a Santa Maria»

jdact

O mistério das origens
«Para abrangermos em relance a história do culto de Nossa Senhora em Portugal, podemos, na verdade, imaginá-la a modo de procissão que se vai desenrolando através dos tempos e incorporando tudo quanto de belo e nobre floresceu neste recanto da Península.
Ficam para além do horizonte histórico as primeiras figuras do devoto cortejo. É a lenda que pretende identificá-las desde a idade apostólica, pondo à frente S. Tiago Maior.
Na sua viagem de evangelização pela Hispânia, o Apóstolo deteve-se algum tempo em Saragoça e, uma noite, estando a rezar na margem do Ebro, foi favorecido com a aparição de Nossa Senhora, então ainda viva, a pedir que lhe erguesse um altar. Apressou-se S. Tiago a cumprir os desejos da Virgem. Auxiliado por alguns discípulos, dedicou-lhe um oratório a que sucedeu, no volver dos tempos, o “amplo e augusto templo” do Pilar. Os próprios anjos colaboraram na obra, trazendo do céu a coluna de mármore que serve de pedestal à imagem da Senhora. Assim o refere, como se lia nos breviários de Espanha, ‘uma piedosa e antiga tradição’.
Infelizmente, esta tradição, ainda menos consistente que a da vinda de S. Tiago, não pode abonar-se com quaisquer documentos históricos. Passou ignorada ao poeta Prudêncio, natural de Saragoça, que cantou o heroísmo dos seus mártires. Não alude a ela o bispo S. Bráulio, que tanto celebrou as glórias da cidade, nem Santo Ildefonso de Toledo, que compôs um tratado da Virgindade de Maria. Enfim, é desconhecida nos monumentos da antiga Liturgia hispânica.

jdact

A tradição escrita da Virgem do Pilar não vai além dos séculos XIII ou XIV. É um esforço da piedade medieval para desvendar, a respeito do culto de Nossa Senhora, o mistério que costuma pairar sobre a origem de todas as coisas.
Reflexo dessa lenda em Portugal é o que se conta da imagem de Nossa Senhora da Oliveira. Na sua passagem pelo Ocidente, S. Tiago teria encontrado, nas terras onde havia de formar-se a vila de Guimarães, um santuário pagão dedicado à deusa Ceres. Purificou-o do culto idolátrico e consagrou-o aos mistérios cristãos, erguendo nele um altar com a imagem da Virgem. Quando sobreveio a invasão dos bárbaros, escondeu-se a imagem num monte sobranceiro ao templo e que ainda hoje se chama de Santa Maria. Depois da conversão dos Suevos, voltou ela à primitiva morada e aí esteve em grande veneração até que, no século X, a Condessa Mumadona a transportou para a igreja do mosteiro que edificou em sua honra.
Há uma verdade oculta na bruma destas lendas. O culto da Virgem Santíssima veio-nos com os primeiros discípulos do Evangelho que percorreram os caminhos ibéricos e as estradas romanas. A alma hispânica foi devota de Santa Maria, desde que conheceu e amou o seu Divino Filho, Jesus.

As primeiras festas litúrgicas
É no século VII que a história encontra na Península a primeira festa em honra da Virgem Santíssima. Dela nos deixaram precioso testemunho os padres do 10º Concílio de Toledo (1 de Dezembro de 656), entre os quais estavam os bispos Frutuoso de Braga, Zósimo de Évora, Flávio do Porto e Cesário de Lisboa.

jdact

As igrejas hispânicas costumavam celebrar a festa da Anunciação a 25 de Março, mas, como entretanto ocorria o tempo da Quaresma ou da Páscoa, determinou o Concílio que ela se transferisse para 18 de Dezembro. Eis o que se lê no capítulo I: 
  • “Atendendo a que, no dia em que o Anjo anunciou à Virgem com palavras e significou com milagres a Conceição do Verbo, não pode celebrar-se condignamente a respectiva festa, por ocorrer entretanto a Quaresma ou a Páscoa, durante as quais, por disposição antiga, não se devem celebrar solenidades dos Santos; e como não convém, aliás, festejar a Incarnação do Verbo no tempo em que se comemora a sua Morte e gloriosa Ressurreição; determinou-se especialmente que, oito dias antes do Natal do Senhor, se celebre com toda a solenidade e grandeza a festa de sua Mãe. Assim como os dias que se seguem ao nascimento do Filho participam da dignidade da sua festa, assim também é honroso solenizar os precedentes com a festa da Mãe. Que é a festa da Mãe senão a Incarnação do Verbo? Deve ser tão solene essa festa como a do próprio Natal. Assim o vemos praticar em muitas igrejas de distantes terras. Celebre-se, pois, uniformemente a 18 de Dezembro a festa da Mãe do Senhor”.
Santo Ildefonso, que pouco depois ascendeu à sé de Toledo, instituiu três dias de jejum como preparação desta solenidade e compôs para ela alguns dos seus melhores sermões. Contam os biógrafos que Nossa Senhora lhe apareceu no próprio dia da festa e lhe ofereceu uma casula branca, com estas palavras: “Vem, querido Servo, recebe da minha mão esta pequena lembrança, que te trago dos tesouros de meu Filho, para a usares no dia da minha festividade”. Esta cena inspirou a Murillo o quadro famoso que se guarda em Madrid, no Museu do Prado». In Miguel de Oliveira, Santa Maria na História e na Tradição Portuguesa, Academia Portuguesa da História, União Gráfica, Lisboa, 1967.

Cortesia de União Gráfica/JDACT