sábado, 17 de março de 2012

Joana, “a Louca”. Rainha Joana I de Espanha. «Era lamentável que a filha ainda não tivesse desenvolvido um porte real, deixando-se assustar com tanta facilidade. Aquela jovem de cabeça curvada e dedos que mexiam, nervosos, na faixa, não era certamente a mesma que a desafiava, teimosa, a filha voluntariosa que se vira forçada a repreender ainda recentemente»

Na época de Isabel e Fernando
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Casamento
«Joana parara defronte das portas da Sala do Conselho. O que a esperaria do outro lado? Sabia apenas que não tinha escolha, que não havia alternativa.
As aias atarefaram-se a prender-lhe madeixas que se haviam soltado dos cabelos castanho-dourados, enfiando-as sob a fita verde que lhe cruzava o cimo da cabeça e verificando o estado da trança enrolada que lhe caía pelas costas até à cintura. Dobraram também as largas mangas a fim de expor o forro de cetim vermelho e alisaram-lhe as pregas das saias.
Zayda sorriu. - Os meus pensamentos acompanham-vos para vos dar força, mesmo que não esteja a vosso lado.

Joana sobressaltou-se quando as portas se abriram. Chegara o momento. Soltando pequenos soluços de dor, forçou-se a entrar na sala, dando os primeiros passos de um futuro desconcertante.
O salão resplandecia de vermelhos, brancos e dourados, desde as paredes até às cornijas e à talha pintada no tecto. Ricas tapeçarias realçavam o esplendor. A todo o comprimento da Sala do Conselho perfilavam-se os nobres, os prelados e os embaixadores. Estava presente quase toda a corte.
Joana ficou profundamente intimidada, detendo-se após alguns passos, pois as suas pernas recusavam-se a mover-se. Ao fundo daquela esplêndida reunião de testemunhas e convidados, a rainha Isabel e o rei Fernando sentavam-se nos seus tronos, sob um dossel de veludo vermelho com o escudo de Espanha, cujo brasão declarava orgulhosamente o poder da união das duas casas reais. Em vez dos trajes simples de todos os dias, que preferiam, os monarcas envergavam brocados dourados, cetins vermelhos e sedas.

Joana lançou um olhar nervoso na sua direcção antes de baixar a cabeça, ansiosa por evitar tantos olhares inquisidores. Enquanto observava os ladrilhos do chão, tudo se tornou subitamente claro. Tratava-se de uma reunião de despedida. Amuou, manifestando em silêncio o desapontamento pelo facto de aquilo não se poder comparar com as extravagantes exibições de torneios e banquetes organizados para a irmã. Era tão injusto! Seria bem mais fácil perder-se no seio de uma multidão de folgazões do que estar ali, sozinha, perante o escrutínio de tanta gente.

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A rainha Isabel percorreu a sala com o olhar e pensou quanto tempo a filha tencionaria permanecer ali com aquele seu ar desolado. O facto de Joana se sentir intimidada com a situação começava a aborrecê-la.
Era lamentável que a filha ainda não tivesse desenvolvido um porte real, deixando-se assustar com tanta facilidade. Aquela jovem de cabeça curvada e dedos que mexiam, nervosos, na faixa, não era certamente a mesma que a desafiava, teimosa, a filha voluntariosa que se vira forçada a repreender ainda recentemente.

Porém, a falta de dignidade de Joana não era a única preocupação de Isabel. Havia a sua tendência crescente para se isolar (assustadoramente semelhante à da avó, e que contribuiu para o seu estado de confusão mental). Tinha esperança de que não passasse de mais um sintoma da fase rebelde tão própria de jovens da sua idade.
Joana ergueu por fim a cabeça. Fez uma vénia aos pais e deu início ao longo caminho que levava aos tronos. Pelo canto do olho, viu alguns amigos, incluindo o seu preferido, o professor de latim. Os seus sorrisos calorosos encorajaram-na e manteve a cabeça erguida até avistar Cisneros, ao lado da mãe. Era o recém-nomeado arcebispo de Toledo e primado de toda a Espanha. Joana tinha um medo terrível dele. Era muito mais que o chefe da Igreja, era um homem poderoso, dono de um intelecto penetrante e de um zelo incansável em questões de fé. Aquele padre era capaz de influenciar, persuadir e guiar a rainha, ousando mesmo dirigir-se-lhe como igual.
De espantar, o facto de a rainha não se ofender com a sua audácia, o que revelava bem o seu poder e fazia Joana tremer ainda antes de encarar o longo rosto cadavérico e os olhos encovados. Estava bem ciente de que Cisneros lhe sondara profundamente a alma e a achara indigna». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT