sexta-feira, 30 de março de 2012

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Senna Fernandes. «Nos bailes, fazia a sua entrada sozinho, só para causar melhor efeito. Ficava à porta da sala de baile, passava um olhar pelo ambiente, com o insuportável beiço de superioridade de inglês enjoado, como se tivesse de perfazer um frete. Daí a pouco, estava rodeado pelo ‘frufru’ de saias»


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«Dezoito anos, ainda muito novo, Adozindo foi trabalhar pare a agência do pai que um dia havia de herdar, o que, por outras palavras, significava que mourejava pouco ou madraçava muito. Tinha tempo, outra coisa melhor viria, justificava com um encolher de ombros. Os subordinados do pai ressentiam-se, ao contemplá-lo mais preocupado com o espelho do que com as contas e o despacho do serviço. Por isso, apelidaram-no com desprezo de ‘Belo Adozindo’.
Considerava-se irresistível e era-o. Coleccionava corações, dardejando olhares fatais, o sorriso de dentes brancos e um alçar de sobrancelhas que ensaiava em casa. Estava sempre em companhia de mulheres bonitas, tinha uma lábia açucarada e dançava magnificamente.

Nos bailes, fazia a sua entrada sozinho, só para causar melhor efeito. Ficava à porta da sala de baile, passava um olhar pelo ambiente, com o insuportável beiço de superioridade de inglês enjoado, como se tivesse de perfazer um frete. Daí a pouco, estava rodeado pelo ‘frufru’ de saias. As meninas disputavam-no, esforçavam-se para lhe chamar a atenção. Sabia também melar o coração das velhotas e das mulheres casadas. Quando valsava, como um profissional, o ‘Danúbio Azul’ e o ‘Conde de Luxemburgo’, a sala abria um espaço para ele e para o seu par. Borboleteava, portanto, conquistava e provocava desesperadas paixões.
Não lhe faltavam bons partidos, moças prendadas com dinheiro, dispostas a tudo. Mas ele, habilmente, evitava comprometer-se, enfatizando com segurança que ainda não encontrara mulher que o merecesse.

Uma, então, rejeitada, curtiu uma doença romântica e foi urgentemente embarcada para a Suíça, para esquecer e se restabelecer. Outra, mais grave e mais mártir, professou, indo acabar os seus dias num convento das Missionárias Franciscanas de Maria. Estes eventos, em vez de lhe ensombrar a reputação, aumentaram-lhe o prestígio. Olímpico, sacudia a responsabilidade, afirmando simplesmente:
- Partiram virgens. Não desgracei donzela nenhuma!
Em todas, descobria defeitos. Esta porque tinha maus dentes, aquela porque era escanzelada como um palito, outra porque seria uma pipa, mal parisse o primeiro filho, e outra porque era inteligente demais e ele não queria uma esposa sabichona. E assim por diante. Em suma, nenhuma lhe servia, para desespero dos pais que suspiravam por netos, da avó e das tias que o desejavam arrumado. Somente a prima Catarina, mais velha uns anos, de nariz aguçado, regozijava-se de estas delongas, pois acarinhava uma secreta esperança que os olhos dele volvessem finalmente para ela. Por isso, tratava-lhe com tanto esmero da roupa branca, cerzia-lhe as meias e pregava os botões das suas camisas e ceroulas.

O ‘Belo Adozindo’ tinha bom fundo, mas a vaidade e a jactância perdiam-no, com o decorrer dos anos. Se, ao menos, fosse comedido na língua! Mas não. Não lhe bastavam as conquistas-reais, tinha de alardeá-las, numa gabarolice irritante e monótona de fala-barato, sem necessidade de o ser. Era intolerável, então, afastando inconscientemente possíveis amigos, todos fartos, roídos de inveja e ressentimento.
- Esta? Já andei com ela. Beija mal. A Norma? Tem um umbigo maior que o olho. A Esperança? Tem mau hálito e chora muito. A Laurinda? Meu Deus, é uma «ostra». Cola-se como um adesivo e abafa.
[…]
Nisto, o pai Aurélio tomou a grande decisão de mudar de residência. Aborreciam-no há muito o cortinado cerrado das acácias, a privar as varandas da vista para o Largo de Camões. Traziam-lhe mosquitos, mariposas e outras variedades de insectos.
E depois, a revoada alucinante de morcegos que aterrorizava. Aliás, o casarão, arrendado pela Santa Casa da Misericórdia, estava decrépito, cheio de correntes de ar, moído pela formiga branca, um paraíso de ratazanas que corriam, em tropel e incessantemente, pelo forro dos tectos. Precisava de reparações radicais». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT