sexta-feira, 9 de março de 2012

José Mattoso. A Escrita da História (teoria e métodos). «Só me interessa o presente e a maneira de me movimentar no espaço e no tempo em que vivo. Quero com isto dizer que só me atrai, no passado, aquilo que me permite compreender e viver o presente. O que acontece, é que, para o compreender, não me basta conhecer uma pequena parcela»

Cortesia de abracadabraspace

«Ora o discurso, mesmo científico, acerca do passado, não é a sua imagem fiel, mas uma expressão do que o seu autor pensa acerca da Humanidade. Não basta, por isso. estudar os documentos escritos: é preciso procurar o passado também na paisagem, nos monumentos, nas iluminuras, nos jogos, nos contos, no imaginário colectivo, nas técnicas artesanais, nos pelourinhos, nos barcos de pesca, na terminologia das formas de tratamento pessoal, na paginação dos livros, nos brinquedos, na moda, enfim, em tudo. Tudo tem uma espessura diacrónica. A medição dessa espessura é a operação que permite situar o respectivo objecto perante uma grande multidão de dados de natureza estrutural e conjuntural, para avaliar a sua importância e o seu significado no caminhar da Humanidade.
Em terceiro lugar, a observação do passado não se destina a um macabro trabalho de desenterrar mortos. Não é uma viagem ao reino das sombras, nem pode resultar de uma predilecção bafienta pelo que o tempo esterilizou. O que está morto, está morto. De facto, só me interessam as coisas vivas, que me interpelam, que se metem comigo. Só me interessa o presente e a maneira de me movimentar no espaço e no tempo em que vivo. Quero com isto dizer que só me atrai, no passado, aquilo que me permite compreender e viver o presente. O que acontece, é que, para o compreender, não me basta conhecer uma pequena parcela. tenho de o conhecer todo, não, em todos os pormenores, mas como uma totalidade na qual tenho de me inserir. Também não posso escolher da História só aquilo que me agrada, mas também o que incomoda, ou até o que me poe em causa as minhas ideias, nas sucessivas interpretações que, nas diversas fases da minha vida, vou dando à realidade.

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Ora é justamente de uma constante tentativa de comparar o presente com o passado, que resultam as principais alterações acerca da minha maneira de ver a sociedade e o mundo. Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido.
Esta ideia da passagem do caos à ordem introduz-nos já num segundo momento da elaboração da História, ou seja no processo que permite transformar os materiais colhidos na observação contemplativa da realidade passada em representação mental. De facto, já antes pressupunha que a atitude contemplativa, imposta pelas infinitas dimensões do objecto histórico, não conduzia apenas a tentar abarcar uma totalidade sem margens, mas também a descobrir a sua natureza, os seus níveis, as suas partes e estruturas, a maneira como as unidades se relacionam com os respectivos conjuntos, e estes entre si e com essa mesma totalidade. Ou seja, partia do princípio que é possível encontrar fios condutores na imensidade do real, ou melhor na imensidade dos vestígios que deles chegam até mim. Dito por outras palavras, partia do princípio que existe neles uma ordem e que essa ordem me é mentalmente acessível. Ou seja, que a aparência caótica do passado, sobretudo quando se encara na sua totalidade, se pode resolver em ordem, e que esta ordem não é arbitrária. As soluções possíveis são, decerto, muitas e variadas; mais ainda, está-me vedada a descoberta da última e definitiva palavra que resolveria todos os mistérios e contradições. Mas isso não altera a necessidade de pressupor o fundamento objectivo da estrutura do real, assim como a de admitir a sua acessibilidade pela sua percepção. Sem este pressuposto, não seria possível a representação mental globalizante acerca do passado, a que a História procede. Com efeito, e apesar de muitas e variadas objecções, admite-se actualmente que a História é uma ciência, e não uma disciplina literária. Quer isto dizer que propõe um discurso não arbitrário, quer do ponto de vista do conteúdo, quer do ponto de vista da forma; e ainda, que reivindica a possibilidade de encontrar uma relação necessária entre o discurso e o seu objecto». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.

Cortesia de Imprensa Universitária/JDACT