terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… curvas de flores e aves e cristais, de pombas, liz e cruzes, como tapetes de Arraiolos, nos quais ninguém, ao pisar e repisar, repara; carros baços e definitivos esperam a morte, o vento magro e acre das geadas…»

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Tiago
«(…) Mas na casa de banho estava a irmã, e Jó teve de voltar pelo mesmo caminho ao quarto e de limpar-se, despertando Tiago, que estremece; o sonho deste: à noite a mãe deitava-me; no quarto uma luz baixa; a cama quente, com botija de cobre que queimava e brilhava; tudo fechado curvo búzio; tinha já o pijama e a mãe beijou-me quando no corredor ouvi passos pesados e logo a porta se abriu silenciosa e o lobo entrou; calado caminhou devagar, seguro, cigarro colado ao lábio; o fumo ardia-me nos olhos ensonados e enevoava-os; ele trazia, vestido e justo pelo cinto de cordão ao corpo alto, o grande robe de meu pai e, nos pés, os sapatos de quarto; apalpou a mãe no peito; logo largou o cigarro e, sem sequer olhar para mim, beijou-a muito na boca e a levou; ela nada dizia e eu de pé na minha raiva sobre a cama; queria gritar, chamar, mexer-me, mas tinha a boca muda e os pés selados; foram juntos para o quarto; tudo ficou escuro turvo breu; de noite veio outra vez o lobisomem e eu deitado sem dormir; começou a lamber-me a orelha de cima com sua baba fria; morto de susto, meti a cabeça dentro dos cobertores, fiquei imóvel, sem respirar; por fim ele saiu, parando um pouco à porta; ouvi-lhe os passos afastando-se; então pude chorar o meu medo mortal (Tiago acorda no momento em que Jó bate, de volta, com a porta do quarto; tem os olhos molhados, húmida a almofada; da boca entreaberta escorre-lhe saliva mole sobre o lençol).

Moisés
Lençol não existe na cama de Moisés; tão-só o cobertor castanho já sem pêlo, puído de sebo e de velhice; Moisés acorda muitas vezes de noite; é noite alta com estrelas, uma lua distante, no círculo de luz sobre as veredas secas; lua translúcida alaranjada por trás da qual as nuvens se esfarrapam, no seu quieto mar, liso, límpido, raso; a terra charruada tem um tom escuro escalvado, enquanto a noite ocupa as enormes esferas; ao fundo da quinta de verde sombrio passam as carroças ecoando, estalando na areia que o vento transportou e pés desertos, grossos, às horas gastas, pisam; o milho cresceu e voltou a crescer, as espigas apontam seus espetados dedos, as folhas como espadas batem de encontro ao vento; o vento percorre o respirar da vila, as muralhas, as torres e a ponte; Moisés pensa e diz, deitado, com um gesto de mão lento no ar, que da padreação do vento sobre a vila nasceram os negros corredores da noite; noite aberta, extensa, mexendo no rumor das árvores lívidas, próximas das fachadas, cerradas; ao nível dos telhados paira uma força dura, rasa, irromper de fios e ervas para o incerto voo, em breve, de rapaces; é noite longa e longa, morta, vinda do outro lado; é noite, átrio da morte, sem esforço e sem descanso girando sobre a terra, sobre os torrilhões, morros, ameias de pura altura; do outro lado fica o ignorado; e debaixo das sombras das coisas de cá, que memória e medo me sufoca e toma? pergunta-se Moisés, o antigo eguariço, sem encontrar palavras e sem uma resposta à sua grande inominável ignorância; do outro lado o quê? copas das árvores redondas de Alentejo, árvores cheias de sedestigmas diante do mar e suas águas gordas à noite de altas ondas sob o brilho da lua macia decepada mulher que vem completamente nua respirando atenta aos nossos movimentos; tinha eu quinze anos, era um homem, bati à porta da casa dela, barricada, e me disseram: quem é e ao que vem? respondi e disse: sou Moisés dos Santos, venho buscar honra e fama e mulher prá cama; logo a mãe dela destrancou a porta, atirou o cachaporro ao chão e abraçou-me com seus grandes braços, bebemos uns copos com torresmos e fugimos nessa noite para casar daí a oito dias, dormimos na tasca do Cavalo Branco; agora a noite mora sobre a vila em volta sitiada de estrelas, de espaços, de telhados, de carros que, na estrada, muito espaçados passam e se arrastam tarde, ou se quedam imóveis, junto aos passeios cheios de enfeites de pedra, barrocos e abstractos de formas curvas de flores e aves e cristais, de pombas, liz e cruzes (como tapetes de Arraiolos) nos quais ninguém, ao pisar e repisar, repara; carros baços e definitivos esperam a morte, o vento magro e acre das geadas, o magno mistério das manhãs, a sombra inquieta de luzes longe e perto, da penitenciária num cabeço em frente, fumo negro de padaria ou necrotério no hospital onde há clarabóias acesas sobre pernas cortadas e velhos com tosse como eu». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT