terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil. Soraya Silveira Simões. «As rubricas podem contemplar desde a capacitação de pessoal, o trabalho de campo, a elaboração de material para campanhas preventivas, reuniões e o fomento institucional, entre outras possibilidades mais pontuais»

 
Cortesia de wikipedia

«(…) Por isso, fazer reconhecer a prostituição como uma ocupação tornou-se um dos principais objectivos das associações de prostitutas de diversos países, encontrando, no Brasil, apoio entre os agentes do Ministério da Saúde e, por conseguinte, do Ministério do Trabalho e do Emprego. Utilizando a metodologia por pares e beneficiando-se da ideia de agente multiplicador, ou seja, da acção de um membro da categoria informando os outros membros sobre determinado problema e modos de agir, o Ministério da Saúde não só consubstanciou a formação das associações como as transformou em seu braço direito no combate às doenças venéreas e AIDS. O auxílio institucional e financeiro para campanhas de fortalecimento da identidade colectiva representou a consolidação de um novo capital social e político e, do mesmo modo, cumpriu o papel de um seed money que veio contribuir para o processo de definição da categoria como uma ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Segundo o conjunto dos conceitos empregados na formulação dessas políticas de saúde, o leitmotiv de toda a empreitada se assenta nos argumentos de resgate da auto-estima, resgate da cidadania e de redução de vulnerabilidades, como forma de melhor estimular o cuidado de si no âmbito da vida pessoal, mas também, e de maneira inextrincável, no âmbito da vida cívica. As reivindicações das prostitutas brasileiras por reconhecimento não se restringiu, ao novo papel de interlocutores competentes para a definição das políticas e das ações do MS. Inúmeras outras iniciativas do grupo, ligadas também à cultura e à moda, afastaram de vez o discurso vitimizador instituindo, no espaço público, uma concepção da actividade pautada pela escolha e não pelas vicissitudes da vida. Com isso, atraíram a atenção e a simpatia de um público mais amplo e tornaram conhecidas as causas da categoria.
 
Visibilidade pública
A partir dos anos 1990, a ONG Davida, fundada pela presidente da Rede Brasileira de Prostitutas (D. Gabriela Silva Leite) e com sede no Rio de Janeiro, montou peças de teatro e organizou serestas em vários pontos de prostituição da cidade. Na década seguinte, a mesma associação ganharia visibilidade internacional com a criação da Daspu, grife para a qual desfilaram não só as prostitutas que fazem o trottoir na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, como manequins de renome. Na Vila Mimosa, conhecida zona de prostituição situada em região contígua ao centro de negócios da cidade, desfiles de moda também foram organizados. Aqui, no entanto, pela associação dos proprietários dos bordéis para serem protagonizados pelas prostitutas que ali trabalham. Para este desfile, a associação comprou máscaras para que as mulheres preservassem suas identidades. Estas, no entanto, preferiram deixar o rosto à mostra, surpreendendo os organizadores do evento.
Estes dois episódios exerceram um forte apelo na de comunicação social, tendo sido fartamente noticiado pela imprensa nacional e estrangeira o modo como se deu, nos dois casos, a exibição pública dessa identidade social. Os leads precisavam, no entanto, que as iniciativas partiram de grupos distintos (prostitutas, no primeiro caso; cafetinas e empresários, no segundo), reunidos em associações em torno dos quais se estruturam duas das principais áreas de prostituição na cidade do Rio de Janeiro: a Praça Tiradentes, localizada na área central de negócios, e a Vila Mimosa, espécie de cidade cenográfica da prostituição carioca, cujos bordéis funcionam em uma rua sem saída, entre os trilhos das duas gares da cidade, próximo ao centro de negócios do Rio. Essas associações, formadas por prostitutas ou por empresários da prostituição, disputam, hoje, recursos provenientes de programas financiados pelo Ministério da Saúde, através de acordos bilaterais estabelecidos com o Banco Mundial, do BID, de ONGs internacionais e, até 2004, da USAID. Nem todas integram a Rede Brasileira de Prostitutas, defensora do reconhecimento profissional da categoria e principal parceira do MS nas campanhas de prevenção da AIDS e das doenças sexualmente transmissíveis (DST). Em função disso, os conteúdos dos projectos podem variar tanto em termos de metodologia quanto em suas finalidades, embora sejam todos destinados a sustentar campanhas de prevenção junto a uma mesma população. Os principais recursos são obtidos através de projectos estruturados com um pequeno orçamento e encaminhados pelas associações ao Ministério da Saúde. As rubricas podem contemplar desde a capacitação de pessoal, o trabalho de campo, a elaboração de material para campanhas preventivas, reuniões e o fomento institucional, entre outras possibilidades mais pontuais.
Mas é o estímulo à formação de novas associações de profissionais do sexo e seu fortalecimento institucional a principal finalidade a ser alcançada através dos financiamentos oferecidos, sobretudo, pelo Ministério da Saúde. Esta, ao menos, foi a pauta estipulada pela Rede Brasileira de Prostitutas e apoiada pela Comissão Nacional de AIDS (CNAIDS). A participação dos chamados profissionais do sexo categoria que abrange prostitutas, travestis e michês, no trabalho de prevenção da AIDS e das DST é considerado, tanto pelos agentes do MS quanto pelos demais membros da CNAIDS, um dos factores responsáveis pelo reconhecimento do Programa Nacional de AIDS brasileiro como um dos mais bem estruturados e eficazes do mundo». In Soraya Silveira Simões, Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.
 
Cortesia de RAntropologia/JDACT