terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Rumor Branco. Almeida Faria. «… que poderão saber senão que pagaram para isso e querem ver a vida dos outros correr perigo, eles que muito sabem de cavalos e homens, que sabem muito de homens e mulheres pois os viram à sua volta toda a vida…»

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II Fragmento
«(…) Sufocado pela grandeza da planície entre outeiros de oliveiras e sobreiros e trigo que dá o pão quando não vem o suão e traz a fome e a seca, pela terra de antigos conventos por onde correm os ventos, S. Domingos S. Francisco Senhora da Visitação Senhora da Conceição, pelo peso do castelo protector onde é lenda que há séculos um poderoso senhor de longa veste foi colocar duas arcas uma de ouro outra de peste e o povo temendo o que há-de vir não sabe qual abrir, terra de touros e touradas, que sabem do estalar duro dos ossos os que desde as bancadas, cadeiras, camarotes, assistem passivos ao jogo gratuito da vida e da morte que outros homens arriscam mesmo só por vaidade? Que sabem do calor do sangue de bestas e homens misturados? Que sabem da raiva, medo e força fera e da tensão dos músculos que a cada instante os une? Que poderão saber os que pagaram seus bilhetes para assistir como no circo, bem sentados, ao risco que outros correm? Que poderão saber senão que pagaram para isso e querem ver a vida dos outros correr perigo, eles que muito sabem de cavalos e homens, que sabem muito de homens e mulheres pois os viram à sua volta toda a vida, comendo dormindo até amando e assim sabem de sobra do amor, mas o que liga no fundo o racional ao bruto desentendem, nada entendem do que vai na arena ardente e são contudo capazes de gritar protestar ordenar, enquanto Daniel João, naquela tourada daquele dia poeirento e abafado que antecedeu as chuvas outonais na sua calma clara vila alentejana, se mantinha de pé junto à trincheira durante a corrida que terminou mal com um touro tonante enorme e mau, várias vezes em tentas agarrado, e que corneou pisou mordeu todos quantos tentaram pegá-lo de cernelha ou de caras, tendo rachado o cimo da coluna a um deixando-o caído de costas sem acordo os braços paralisados, a outro deslocou o maxilar e reabriu velhas feridas provocadas na cara por um coice, ante os gritos da pânica assistência ora pedindo novas tentativas de pega ora intimando a recolha da impegável fera, touradas que Daniel João gostava de observar em silêncio no meio da ululante multidão esfomeada de emoções, mas dessa vez saiu antes do fim, passando pela enfermaria onde cinco amigos seus e companheiros de infância eram tratados de ferimentos vários e vagueou pelo terreiro da feira, não cantas ceifeira, como há--des cantar se as ceifas são idas, a palha na eira à espera do silo, o trigo guardado prò resto do ano e a tua alegria mais envelhecida com parir um filho, inda mais um filho prò inverno frio, vais gretar as mãos, vais gretar as mãos e vais ter frieiras, vais trocar teu sangue pelo das oliveiras, e isso acordava nele qualquer som do passado, não recordava qual mas música decerto, obsessiva em roda da memória como se estivesse ainda ao piano e as noites começavam a uivar e os professores a inquietar-se sobretudo o padre mestre de moral: muita gente fala em vida eterna mas quem o sabe está calado, e, não tendo saudade do que para trás ficara, sentia que nada daquilo ficara para trás, a todo momento se fazia o presente daquela matéria nunca abandonada e daquela terra de azinho e cevada, quando um grupo de homens lhe veio ao encontro: olha o setôr bons olhos o vejam qué que porqui faz? a gente vai cá à porca da vida temos de pilhar uns filhas da mãe que foram ò monte a passada noute, ladrões assaltaram o solar de Sã Marcos». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT