segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Livro Negro. Hilary Mantel. «… o rei diz-lhes, aqui o Cromwell é o vosso homem; Cromwell, sim, ele viu como se fazem as coisas em Itália e o que é bom para eles também será bom para o Wiltshire»

Cortesia de wikipedia e jdact

Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) Lá em Londres, o embaixador do Imperador, Eustache Chapuys, todos os dias espera a notícia de que as gentes de Inglaterra se levantaram contra o seu rei cruel e ímpio. É uma notícia que anseia fervorosamente ouvir e não olharia a esforços e dinheiro para a tornar realidade. O seu amo, o imperador Carlos, é senhor dos Países Baixos bem como de Espanha e das suas terras de além-mar; Carlos é rico e, de tempos a tempos, enfurece-o que Henry Tudor se tenha atrevido a pôr de lado a tia dele, Catarina, para casar com uma mulher a que as pessoas nas ruas chamam rameira de olhos arregalados. Em mensagens prementes, Chapuys exorta o seu amo a invadir Inglaterra, a juntar-se aos rebeldes do reino, pretendentes e descontentes, e a conquistar esta ilha ímpia onde o rei decretou o seu próprio divórcio por lei do Parlamento e se proclamou a si mesmo Deus. O papa não leva isto muito a bem, que se riam dele em Inglaterra e o considerem mero bispo de Roma, que os seus rendimentos lhe tenham sido cortados e canalizados para os cofres de Henry. Paira sobre Henry a ameaça de uma bula de excomunhão, já preparada mas ainda não promulgada, que o torna um pária entre os reis cristãos da Europa: que são convidados, mais, encorajados, a atravessar o Mar Estreito ou a fronteira da Escócia e a apropriarem-se de tudo o que lhe pertença. Talvez o Imperador venha. Talvez o rei de França venha. Talvez venham juntos. Seria agradável dizer que estamos prontos para eles, mas a realidade é diferente.
No caso de uma incursão armada podemos ter de tirar do chão os ossos dos gigantes para lhes dar com eles nas cabeças, posto que estamos curtos em munições, curtos em pólvora, curtos em aço. Isto não é culpa de Thomas Cromwell; como diz Chapuys, com um esgar, o reino de Henry estaria em melhor ordem se tivesse sido posto a cargo de Cromwell cinco anos antes. Quem quiser defender Inglaterra, e ele decerto quereria, pois ele próprio sairia a terreiro, de espada na mão, tem de saber o que Inglaterra é. No calor de Agosto, esteve de cabeça descoberta à beira dos túmulos esculpidos dos antepassados, homens couraçados dos pés à cabeça em malha de metal, as mãos enluvadas juntas e rigidamente pousadas nas túnicas, os pés de malha descansando em leões, grifos, galgos de pedra: homens de pedra, homens de aço, as suas doces esposas encastradas a seu lado como caracóis nas suas conchas. Pensamos que o tempo não pode tocar os mortos, mas toca os seus monumentos, deixando-lhes os narizes e os dedos cortados pelos acidentes e a atrição do tempo. Um minúsculo pé desmembrado (como se fosse de um querubim ajoelhado) emerge de um pedaço de tapeçaria; a ponta de um polegar deceptado jaz num coxim esculpido. Para o ano temos de reparar os nossos antepassados, dizem os senhores dos condados ocidentais: mas os seus escudos e apoiantes, as suas realizações e feitos têm sempre a tinta fresca e em conversa embelezam os feitos dos seus avós, quem eram e o que tinham: as armas que o meu avô empunhou em Agincourt, a taça que pela sua própria mão John de Gaunt deu ao meu avô. Se nas passadas guerras de York e Lancaster os seus pais e avós escolheram o lado errado, não dizem uma palavra. Uma geração depois, os erros devem ser perdoados, as reputações refeitas; de outro modo Inglaterra não pode avançar, recairá sempre numa espiral que a levará para trás até ao tenebroso passado. Ele não tem antepassados, é claro: não daquela espécie de que nos gabamos. Houve em tempos uma família nobre de nome Cromwell e quando ele ascendeu no serviço do rei os heraldos instaram-no a adoptar a sua cota de armas a bem das aparências; mas não lhes sou nada, tinha ele dito cortesmente, e não quero os feitos deles. Fugira dos punhos do pai quando não tinha mais de quinze anos; atravessou o Canal, tomou serviço no exército do rei de França.
Tinha lutado desde que aprendera a andar; e se havemos de lutar, porque não ser pagos por isso? Há mesteres mais lucrativos do que o de soldado e descobriu quais eram. De modo que decidiu não se apressar a voltar para casa. E agora, quando os seus anfitriões titulados querem conselhos sobre a colocação de uma fonte, ou de um grupo das Três Graças a dançarem, o rei diz-lhes, aqui o Cromwell é o vosso homem; Cromwell, sim, ele viu como se fazem as coisas em Itália e o que é bom para eles também será bom para o Wiltshire. Às vezes, o rei deixa um lugar acompanhado só do pessoal de montaria, a rainha com as suas damas e músicos ficam para trás, enquanto o rei e os seus poucos favoritos atravessam a região caçando com afinco. E é assim como chegam a Wolf Hall, onde John Seymour está à espera para lhes dar as boas-vindas, rodeado da sua florescente família.
- Não sei, Cromwell, diz o velho John Seymour. Toma-o pelo braço, cordial. - Todos esses falcões com nomes de mulheres mortas... não vos desalentam? Nunca estou desalentado, Sir John. O mundo é bom de mais comigo. - Devíeis casar outra vez e ter outra família. Talvez encontreis uma noiva enquanto estiverdes connosco. Nas florestas de Savernake há muitas mulheres novas e frescas. - Ainda tenho Gregory, diz, olhando por cima do ombro à procura do seu filho; está sempre um tanto ansioso a respeito de Gregory. - Ah - diz Seymour, está muito bem ter rapazes, mas um homem precisa também de filhas, as filhas são um consolo. Olhai para Jane. Uma rapariga tão boa». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.

Cortesia de Civilização/JDACT