quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

500 anos de Contactos Luso-Chineses. Fernando Correia de Oliveira. «Como se processa, três anos depois do acordo de Leonel Sousa, a instalação dos portugueses em Macau? … A de que o território foi cedido graciosamente pela China, em agradecimento por os portugueses terem expulsado da zona uma série de piratas. “Não há documentos que o comprovem”»

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Finalmente, um pé em terra
«(…) Os primeiros anos da década de 50 foram, portanto, de regresso. Dada a associação pública e notória dos portugueses com os piratas japoneses durante os decénios anteriores, e com temor de uma reacção de Beijing, as autoridades de Guangzhou resistiram ao desembarque dos comerciantes, fazendo-se as trocas ao largo. Mas, a pouco e pouco, começaram a ocorrer alguns desembarques em pequenas ilhotas do delta (Shang Chuang e Lang Pai Kao, entre outras). E, em 1554, há notícia do primeiro acordo luso-chinês de comércio. Não terá passado à forma escrita, não terá tido o formalismo que Lisboa procurara em iniciativas anteriores, mas os próprios historiadores chineses não o põem hoje em causa.
Numa carta de Janeiro de 1556, enviada de Cochim pelo capitão Leonel Sousa ao príncipe Luís, irmão do rei João III, diziam-se coisas importantes. O acordo tinha sido firmado, oralmente, com a autoridade marítima chinesa da zona. Os portugueses não poderiam voltar a utilizar como nome identificativo folangji, já que estava proscrito pelos decretos de expulsão de 1522-23. A solução foi apresentarem-se, a partir dessa altura, como gente malaia ou siamesa. Só em 1564, e por um lapso dos intérpretes chineses, se descobre a sua verdadeira nacionalidade, de gente de Portugal. Mas é de crer que os mandarins de Guangzhou sabiam, desde o início, com quem estavam a comerciar de novo.
Depois, os novos malaios ou siameses deram pagar as taxas alfandegárias, tal como faziam todos os outros Estados tributários do Sueste Asiático que vinham comerciar a Guangzhou. Comprometemo-nos a pagar uma taxa alfandegária de vinte por cento, como é costume, tal como os naturais do reino do Sião, que frequentam estas águas sob licença do imperador da China, diz Leonel Sousa. Outra condição era a oferta de presentes às autoridades locais, mas em segredo. Eles querem receber presentes dissimulados, pois existem punições severas para quem aceitar subornos, refere Leonel Sousa.
Por fim, era exigido aos portugueses que, de futuro, obedecessem a todas as normas que regulavam o comércio estrangeiro e respeitassem as autoridades chinesas. Devido à má reputação no passado, os mandarins pediram de modo particular a Leonel Sousa que vigiasse e controlasse bem os seus homens. Como o acordo foi feito sem autorização das autoridades em Beijing, os acontecimentos por ele narrados não podem, naturalmente, ser confirmados nas fontes chinesas oficiais da época, mas existem provas privadas coevas que corroboram a história do capitão português. Como se processa, três anos depois do acordo de Leonel Sousa, a instalação dos portugueses em Macau? A visão, romântica, da historiografia portuguesa foi, durante séculos, a de que o território foi cedido graciosamente pela China, em agradecimento por os portugueses terem expulsado da zona uma série de piratas. Não há documentos que o comprovem. O mais provável é que essa instalação tenha sido acidental, informal e quase despercebida nos primeiros tempos. E que tenha contado com a cumplicidade das autoridades de Guangzhou, entretanto subornadas.
Historiadores chineses dizem hoje que os mandarins de Guangdong terão, através da experiência de comércio e contactos na década de 50, percebido que bastava evitarem que os portugueses colaborassem com a população chinesa pouco escrupulosa e com os japoneses para deixarem de constituir uma grande ameaça para a dinastia ou para a nação. Se os estrangeiros fossem confinados a uma zona onde existissem meios para exercer uma apertada vigilância sobre os naturais que faziam esse contacto, o comércio poderia ser lá realizado. Mas a zona deveria, de preferência, ser no continente e suficientemente perto de Guangzhou, para também satisfazer as necessidades dos portugueses. Quanto a piratas, e no que respeita à segurança da cidade, Macau passaria a ser um porto-tampão nas mãos dos militarmente temíveis portugueses, que assim poderiam afastar as ambições de piratas e rebeldes locais». In Fernando Correia de Oliveira, 500 anos de Contactos Luso-Chineses, Público, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-8179-28-6.

Cortesia de FOriente/JDACT