sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Uma História da Leitura. Alberto Manguel. «E certo que tudo o que sei deles hoje reside na presteza com que então me abri aos livros; porém, enquanto agora, conteúdo, tema e assunto são alheios ao livro, antes encontravam-se única e inteiramente dentro dele, não sendo mais externos ou autónomos do que são hoje em dia o número das suas páginas ou o papel»

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A Última Página
«(…) Nunca falava com ninguém sobre as minhas leituras; a necessidade de partilhar veio mais tarde. Na altura, eu era soberbamente egoísta e identificava-me completamente com os versos de Stevenson:

Este era o mundo e eu era rei;
para mim vinham as abelhas a zunir,
para mim voavam as andorinhas.

Cada livro era um mundo em si e nele eu procurava, refúgio. Embora me soubesse incapaz de inventar histórias como as que os meus autores preferidos escreviam, sentia que as minhas opiniões muitas vezes coincidiam com as deles e (usando a frase de Montaigne) comecei a andar muito atrás deles, murmurando: Apoiado, apoiado! Mais tarde, consegui dissociar-me da ficção contida nos livros; mas na infância e em grande parte da adolescência, o que o livro me dizia, por mais fantástico que fosse, era verdade na altura em que o lia e tão tangível como a matéria de que o próprio livro era feito. Walter Benjamin descreve uma experiência semelhante: O que os primeiros livros foram para mim - para recordá-lo teria primeiro de esquecer todo o restante conhecimento de livros. E certo que tudo o que sei deles hoje reside na presteza com que então me abri aos livros; porém, enquanto agora, conteúdo, tema e assunto são alheios ao livro, antes encontravam-se única e inteiramente dentro dele, não sendo mais externos ou autónomos do que são hoje em dia o número das suas páginas ou o papel. O mundo que se revelava no livro e o livro em si não eram nunca separáveis. Assim, em cada livro, também o seu conteúdo, o seu mundo, estavam palpavelmente lá, à mão. Mas, da mesma forma, este conteúdo e este mundo transfiguravam cada parte do livro. Ardiam dentro dele, resplandeciam dele; localizados não apenas na capa ou nas ilustrações, estavam encerrados nos títulos de capítulos e capitulares, parágrafos e colunas. Não se liam livros de ponta a ponta; vivia-se, residia-se entre as suas linhas e, ao voltar a abri-los após um intervalo, era-se apanhado de surpresa no lugar onde se tinha interrompido a leitura.
Mais tarde, adolescente na biblioteca pouco usada do meu pai em Buenos Aires (ele tinha mandado a sua secretária encher a biblioteca e ela comprara livros a metro e mandara-os encadernar à medida das prateleiras, de forma que os títulos no topo das páginas e, por vezes, até as primeiras linhas estavam cortados), fiz uma outra descoberta. Tinha começado a procurar na gigantesca enciclopédia espanhola Espasa-Calpe as entradas que eu julgava relacionadas com o sexo de uma forma ou de outra: Masturbação, Pénis, Vagina, Sífilis, Prostituição. Estava sempre sozinho na biblioteca, já que o meu pai apenas a utilizava nas raras ocasiões em que tinha um encontro marcado com alguém em casa e não no escritório. Eu teria doze, treze anos; estava todo enroscado numa das enormes poltronas, absorvido na leitura dos efeitos devastadores da gonorreia, quando o meu pai entrou e se instalou à secretária. Por momentos, fiquei aterrorizado com a ideia de que ele iria reparar no que eu estava a ler, mas apercebi-me então de que ninguém, nem sequer o meu pai, sentado a alguns passos de mim, podia penetrar no meu espaço de leitura, decifrar o que me estava a ser dito licenciosamente pelo livro que eu segurava nas mãos, e que nada, a não ser a minha própria vontade, poderia permitir a alguém sabê-lo. O pequeno milagre permaneceu silenciado, conhecido apenas por mim. Terminei o artigo sobre a gonorreia mais exultante do que chocado. Mais tarde ainda, na mesma biblioteca, para completar a minha educação sexual, li O Conformista, de Alberto Moravia, O Impuro, de Guy Des Cars, Peyton Place, de Grace Metalious, Main Street, de Sinclair Lewis, e Lolita, de Vladimir Nabokov.
Havia privacidade não apenas na leitura, mas também na decisão sobre o que ler, na escolha dos livros nas livrarias há muito desaparecidas de Telavive, de Chipre, de Garmisch-Partenkirchen, de Paris, de Buenos Aires. Muitas vezes escolhi livros pela capa. Houve momentos que recordo ainda agora: por exemplo, lembro-me de ver a sobrecapa de brilho mate dos Rainbow Classics (publicados pela World Publishing Company of Cleveland, de Ohio) e ficar encantado com as encadernações estampadas por baixo, saindo da livraria com Hans Brinker ou The Silver Skates (de que nunca gostei e que não cheguei a acabar), Mulherzinhas e Huckleberry Finn. Todos estes livros tinham introduções por May Lamberton Becker, intituladas … como surgiu este Livro, e o seu tom bisbilhoteiro ainda continua a parecer-me uma das formas mais excitantes de falar sobre livros. Assim, numa fria manhã de Setembro de 1880, com uma chuva escocesa a martelar nas janelas, Stevenson aproximou-se da lareira e começou a escrever, lia-se na introdução da Sra. Becker à Ilha do Tesouro. Aquela chuva e aquela lareira acompanharam-me durante todo o livro.
Recordo, numa livraria em Chipre, onde o navio em que viajávamos tinha atracado por alguns dias, uma montra cheia de histórias de Noddy, com as suas capas de cores berrantes, e o prazer de imaginar que ia construir a casa do Noddy com ele, usando uma caixa de blocos de construção de brincar representada na capa. (Mais tarde, sem vergonha nenhuma, deleitei-me com a série da The Wishing Chair, de Enid Blyton, que eu não sabia ter sido considerada sexista e snob pelos bibliotecários ingleses.) Em Buenos Aires descobri a série brochada do Robin dos Bosques, com o retrato de cada herói delineado a negro num fundo amarelo, e li as aventuras de piratas de Emilio Salgari, O Tigre da Malásia, os romances de Júlio Verne e The Mystery of Edwin Drood, de Dickens. Não me lembro de alguma vez ler os comentários às obras na contracapa para descobrir do que tratavam os livros; não sei se os livros da minha infância os tinham». In Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.

Cortesia Presença/JDACT