domingo, 12 de janeiro de 2014

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «… mormente pois já seus excessos por outros antes que nós são semeados em tais histórias, cuja nódoa, porém, segundo direito escrito e evangélica doutrina, não põe mágoa em seu linhagem, quando os descendentes dela não forem seguidores de suas perversas pegadas»

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Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Este personagem colectivo, Lisboa, envolve mesteirais, cidadãos, mercadores, armadores, lavradores, homens de pequena conta ou quantia, mancebos e assoldadados. Quase um terço dos 193 capítulos da Primeira Parte da Crónica são dedicados à urbe com quem fala: ó cidade de Lisboa, famosa entre as cidades, forte esteio e coluna que sustém todo Portugal! Por outro lado, vimos já que certo enquadramento social da acção constitui uma novidade maior nas crónicas de Fernão Lopes. Também os factos económicos saltam aqui e ali. E há que referenciar um elemento de ouro: o quotidiano irrompe como uma pintura e, nesses retábulos de prosa, irão beber historiadores e artistas das épocas vindouras, mesmo aqueles que o apoucam. Uma última questão sobre os factos e o seu enquadramento social, particularmente os que fervem na Primeira Parte da Crónica de D. João I. Fernão Lopes herdou boa parte desses factos. Mas podia deixá-los cair no escorregamento dos tempos. Afinal, que cortesão é este que arrasta para o terreno sagrado da luz e da História, por exemplo, o homem de vila Caspirre, avançando a cortar (com a espada ou com a foice?) a cabeça do conde de Viana, filho do conde velho? Que fazem neste teatro a arraia-miúda dos ventres ao sol ou os cachopos que arrastam os corpos ungidos do bispo ou da abadessa?
Fazedores da História dos séculos vindouros deixarão cair esses eventos, envolverão Fernão Lopes na mortalha da sombra quando não do esquecimento. A primeira edição, mutilada, da Crónica de D. João I datará de 1644. Mais nenhuma edição verá a luz do dia até aos finais do século XIX. E só no século XX, honra a Braancamp Freire (embora imprimisse apenas três centenas de exemplares), ao inglês Entwistle, a António Sérgio e outros, o texto da Crónica de D. João I saltou abertamente para a luz. Por que é que este guarda-mor da Torre do Tombo, este plebeu vassalo do rei não deixou cair os eventos da revolução de 1383? Não se trata somente do seu génio, da sua simpatia pessoal pelos miúdos. A resposta tem a ver com o período histórico em que o cronista escreve, tem a ver com o núcleo burguês dirigente da sociedade portuguesa com o qual Fernão Lopes se identifica. Mesmo assim a balança é tão sensível que é possível assinalar diferenças. Quando noticia, por exemplo, a traição dos fidalgos da Beira em 1396, é muito mais cauteloso e discreto, o que parece inculcar que, quando relata estes acontecimentos, o clima político em Portugal se adensara.
Mesmo que tenha omitido alguns dos factos herdados, Fernão Lopes tem plena consciência da carga explosiva que transporta na sua narrativa, sobretudo quando pinta os grandes personagens na sua nudez humana ou na sua traição. E porém quem muitas histórias quiser ler, mormente autênticas e aprovadas, achará que os autores delas louvaram grandes senhores e seus bons costumes. E doutros escreveram suas feias condições e, desvairados feitos. E este modo teve Santo Agostinho na Cidade de Deus, cuja obra e autoridade não é de pasmar. E nós, nesta parte seguindo sua ordenança, forçado é que luxemos algumas pessoas, falando delas em certos lugares, mormente pois já seus excessos por outros antes que nós são semeados em tais histórias, cuja nódoa, porém, segundo direito escrito e evangélica doutrina, não põe mágoa em seu linhagem, quando os descendentes dela não forem seguidores de suas perversas pegadas.
Este homem que enaltece a simples, verdade, que antes calaria que dizer cousas falsas, tem contra ele um clamoroso ataque, precisamente aí, na verdade que seria a menina dos seus olhos e de que procurou a maior certidom. Os seus detractores maiores deixaram, no entanto, marcadas as impressões digitais, quando enalteceram ou omitiram as menos fundamentadas crónicas de Pedro I e de Fernando I e se ativeram ao romance histórico da Crónica de D. João I. Não pretendemos defender a virgindade sem mácula de Fernão Lopes nem de qualquer outro autor, moderno ou contemporâneo, por mais escrupuloso que seja na busca da verdade. As crónicas lopeanas não constituem um evangelho. Mas quanto melhor se conhecem os documentos da Chancelaria de D. João I e os documentos da época, existentes noutros cartórios, mais a Crónica maior se firma de pedra e cal». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT