quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Leitura. Nadja. André Breton. «À margem da narrativa que vou empreender, o meu único desígnio é relatar os episódios mais relevantes da minha vida ‘tal como posso concebe-la fora do seu plano orgânico’, ou seja, na medida exacta em que se abandona aos acasos»

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«(…) É certo que nada me subjuga tanto como o desaparecimento total de Lautréamont atrás da sua obra, que tenho sempre presente no meu espírito o seu inexorável; Tiques, tiques, tiques. Mas para mim há algo de sobrenatural nas circunstâncias de um apagamento humano tão completo. Seria demasiado vão aspirar a isso; aliás, convenço-me facilmente de que semelhante ambição, naqueles que se entrincheiram atrás dela, revela um ideal pouco honorável. À margem da narrativa que vou empreender, o meu único desígnio é relatar os episódios mais relevantes da minha vida tal como posso concebe-la fora do seu plano orgânico, ou seja, na medida exacta em que se abandona aos acasos, ao mais pequeno como ao maior, e me introduz recalcitrando contra a ideia comum que eu possa ter dele no mundo proibido das aproximações súbitas, das petrificantes coincidências, dos reflexos que se avantajam a qualquer outro impulso do espírito, dos relâmpagos que fariam ver, mas ver verdadeiramente, se não fossem mais rápidos ainda do que os outros. Trata-se, sem dúvida, de factos de valor intrínseco pouco controlável, de carácter absolutamente inesperado, violentamente incidente, que pelo género de associações de ideias suspeitas que despertam constituem um modo de nos fazer entrar na teia de aranha, quer dizer, na coisa que seria a mais cintilante e graciosa do mundo se a um canto, ou nas imediações, não estivesse a aranha; de factos que, pertencendo embora à ordem da constatação pura, tomam sempre a aparência de um sinal desconhecido e me obrigam a descobrir, em plena solidão, inverosímeis cumplicidades, convencendo-me estar iludido todas as vezes que me julgo sozinho ao leme do navio. Devia estabelecer-se a hierarquia destes factos, do mais simples ao mais complexo, desde o movimento especial, indefinível, provocado em nós pela visão de objectos muito raros ou pela chegada a certos lugares, movimento sempre acompanhado da sensação muito nítida de depender dele, para nós, qualquer coisa de grave, de essencial, até à ausência total de paz que nos valem certos encadeamentos, certos concursos de circunstâncias que ultrapassam largamente o nosso entendimento e só admitem que regressemos a uma actividade razoável quando apelamos na maioria dos casos, para o instinto de conservação. Seria possível estabelecer uma série de escalões intermediários entre estes factos-escorregadelas e estes factos-precipícios. Deles, destes factos de que só consigo ser a testemunha espantada, até aos outros, até àqueles de que me gabo ser capaz de discernir as relações e, em certa medida, presumir as interferências, vai provavelmente a mesma distância que separa uma dessas afirmações ou um desses conjuntos de afirmações que constituem a frase ou o texto automático e a afirmação, ou conjunto de afirmações, que constituem, para o mesmo observador, a frase ou o texto cujos termos foram por ele maduramente reflectidos e pesados. A sua responsabilidade, por assim dizer, não lhe parece comprometida no primeiro caso, mas afigura-se-lhe que o está no segundo. Em compensação, sente-se infinitamente mais surpreendido, mais fascinado pelo que se passa naquele do que pelo que acontece neste. E mais orgulhoso, mais livre, o que não deixa de ser singular. Assim acontece com essas sensações erectivas de que já falei, cujo quinhão de incomunicabilidade, também ele, é uma fonte de prazeres inigualáveis». In André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.

Cortesia E. Estampa/JDACT