terça-feira, 11 de março de 2014

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique S. Fernandes. «À noite, já havia quem afirmasse que fora à pedrada e o diabo, batera em retirada, tremelicando de pavor. Os afagos da Abelha-Mestra foram nessa noite mais eloquentes. Não havia dúvida que “A-Leng era a princesa”»

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«(…) Não podes ir muito longe, com esses sapatos sujos! Diabo, que se esquecera deles! Com os salpicos de água, os sapatos tinham as marcas secas de lama e poeira. Estragavam-lhe o perfil romântico. Estupor da aguadeira! Precisava duma lição, a descarada. Foi um passeio magnífico, de peixe abundante e compensador, e almoçaram numa clareira dos Sete Tanques da Taipa. Com o êxito das suas qualidades de pescador, Adozindo esqueceu-se dos seus estafados gabanços, para alívio dos seus companheiros. Ficaram até a conhecê-lo melhor e ao seu lado simples e cativante. O regresso fez-se já noite e, no caminho da casa e cheirando a peixe, tomou a súbita decisão de atravessar o Cheok Chai Un. Cruzou-se com pouca gente, recolhia-se ali cedo, e não viu a sombra de aguadeira nenhuma. Em casa, ouviu a repetidíssima descompostura do pai, a que não ligou, apoiado no coro das mulheres que tentavam justificá-lo. Ao deitar-se, o vulto da aguadeira apareceu, como um espinho no seu orgulho. Durante uma semana e tal, olvidou o Cheok Chai Un. Afinal, era uma coisa sem importância que não merecia um cisco de preocupação. No entanto, ao ver passar pela estrada uma aguadeira de meia-idade e exausta, lembrou-se da negridão doutra trança. O despeito, de novo, amargou-lhe a boca. Imprudentemente, retomou o mesmo trajecto do dia da pesca. A hora fremente do poço tinha passado. Ao aproximar-se do sítio, viu o vazio do movimento, apenas duas mulheres que puxavam sossegadamente as cordas donde pendiam pequenos baldes. Mas logo, junto dum paredão, descobriu duas penteadeiras, em volta das quais, uma mancheia de aguadeiras e lavadeiras se acocoravam, à espera da vez, num zumbido gárrulo e estouvado.
Uma delas precisamente cravava o pente no negrume dos cabelos da aguadeira malcriada, esticando-os para trás, o que obrigava a jovem a elevar o queixo e a mostrar o traço fino do seu pescoço e o relevo atenuado do peito. Era linda a aguadeira! Parou, para observar melhor. Nem lhe faiscou na mente que estava no Cheok Chai Un, num bairro de má fama, onde se penetrava apressadamente para cortar caminho e nunca para visitar e ficar. Nem que o seu procedimento podia afrontar, por incorrecto e insultuoso. Achava até natural o exame àquele conjunto de mulheres descalças, como a um cenário exótico. A algaraviada solta e despreocupada interrompeu-se. Os rostos afivelaram linhas duras, as moças, as mais tímidas, a encolherem-se, enquanto as penteadeiras resmungavam indignadas. Os kuai-lous, que pelo bairro apareciam sumiam-se lepidamente. Aquela era a primeira vez que um se petrificava diante delas, com um desplante inqualificável. A-Leng foi a única que se mostrou senhora de si. As narinas principiaram a inflar. Aquele rapaz era o mesmo do outro dia. Mais uma vez se confirmava que os kuai-lous, não tinham maneiras. Não se mirava assim, como se ela e as amigas fossem simples galinhas expostas no mercado. O que está a olhar? Nunca viu mulher nenhuma? - Admirava o seu cabelo, respondeu, num chinês de sotaque, mas perfeitamente compreensível. Era um espanto que falasse a língua. Mas dominou-se e disse com aspereza: -Já admirou bastante. Toca a andar... A voz fina soava ameaçadora. Não ia diminuir-se nem tremer, no meio daquela assistência. Na mão surgira uma pedra desgarrada da calçada. Se teimasse, a rapariga era bem capaz de lançá-la, gritando depois, em algazarra. Corou e obedeceu. Deixou atrás um coro de gozo e o estilhaçar de gargalhadas.
Outra vez enxotado como um cão tinhoso. Uma garota de pé descalço, uma criatura abaixo do nível, de criada tinha a coragem de enxovalhá-lo, a ele, o Belo Adozindo. Pelos vistos, a petulante não se impressionara com a sua aparência e indumentária de grão-senhor. E a saber que tantas mulheres morriam por desejar que ele se lhes plantasse em frente. O prestígio de A-Leng cresceu. Desafiara um kuai-lou, e este fugira. A notícia espalhou-se pelos becos e vielas do Cheok Chai Un, com os exageros. À noite, já havia quem afirmasse que fora à pedrada e o diabo, batera em retirada, tremelicando de pavor. Os afagos da Abelha-Mestra foram nessa noite mais eloquentes. Não havia dúvida que A-Leng era a princesa.

Adozindo, pela tarde fora, remoeu o novo vexame. A vaidade ferida era como um redobrado espinho a verrumar-lhe o amor-próprio. Era um desaforo, precisava de infringir-lhe uma lição! Uma formiga em despique com o Belo Adozindo. A gargalhada de troça, a pedra em riste, queimavam-lhe de tal maneira que nem o prometido rendez-vous com os seios de rola arrulhante adoçava a sua disposição. Não estava afeito a ser humilhado por uma mulher. Não, não ia consentir que o facto passasse em claro, impunemente. Não se brincava assim com o Belo Adozindo. No jantar, desancou na escória do Cheok Chai Un, contra quem se deviam tomar providências draconianas. Até as raparigas de pé descalço eram atrevidas, desbocadas, não respeitando o cidadão pacífico que por lá se aventurasse, umas desavergonhadas. Na boca dele, o Cheok Chai Un transformava-se num imenso bordel infame, só comparável com o Beco da Rosa. A família, devorando o saboroso repasto, concordava, como os convidados. No conforto duma mesa repleta, a toalha branca e rendilhada estendida, sobre a qual refulgiam os talheres e tilintava a loiça fina, era fácil de criticar. Não se levantava uma voz generosa, em defesa daquela gente que só contava com ela própria, abandonada à sua sorte de gueto». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da F. Oriente/JDACT