domingo, 9 de março de 2014

Histórias de Amor de Outros Tempos. Retratos Vivos. Pascal Quignard. «Que bela era! Pousou a bandeja de pé alto no chão, colocou os pauzinhos no seu lugar, empurrou-a para junto do hóspede, e desapareceu. Vista de costas, a cascata longa e ondulante dos cabelos parecia chegar-lhe à cova dos joelhos»

jdact e wikipedia

História do ministro do Centro Takafuji
«(…) O rapaz continuou deitado durante algum tempo, a descansar. Depois, a porta de correr que dava para o quarto contíguo abriu-se e ele viu entrar uma rapariga de uns treze ou catorze anos, envergando uma túnica cor de malva por cima de umas calças largas, de um vermelho-vivo. Numa das mãos trazia um leque que lhe cobria o rosto, e na outra, uma bandeja de pé alto. Hesitante e tímida, parou longe dele. Aproxima-te, disse-lhe o rapaz. Ela aproximou-se devagar, sobre os joelhos. Com aqueles traços delicados e os cabelos separados sobre a testa a caírem-lhe deliciosamente sobre os ombros, ninguém diria que era filha de um camponês. Que bela era! Pousou a bandeja de pé alto no chão, colocou os pauzinhos no seu lugar, empurrou-a para junto do hóspede, e desapareceu. Vista de costas, a cascata longa e ondulante dos cabelos parecia chegar-lhe à cova dos joelhos. Uns instantes depois, estava de regresso, trazendo vários pratos com comida. Era ainda uma criança; não sabia servir bem, limitava-se a colocar os pratos no chão e recuava logo, sempre de joelhos.
Tinha trazido arroz estaladiço, nabos pequenos, búzios, carne seca e outras coisas mais. Depois daquele longo dia de caça, o rapaz estava esfomeado e devorou tudo sem pensar em queixar-se daquela ementa de gente pobre. Serviram-lhe saké, que também não recusou, e, como a noite já ia alta, preparou-se para dormir. Mas a rapariga que acabava de o servir não lhe saía do pensamento. Não é lá muito tranquilizador dormir sozinho. Não querereis vir fazer-me companhia?, chamou ele baixinho, e ela apareceu. Vem cá!, disse-lhe ele, atraindo-a para os seus braços. Ao vê-la abraçada a si, achou-a ainda mais bela e mais encantadora. Ficou perturbado; com toda a sinceridade do seu coração de rapaz, prometeu-lhe que nunca deixaria de a amar, e a longa noite de Outono foi ainda mais longa e mais terna. Não dormiu um só instante, todo entregue ao seu amor. A rapariga revelava tal nobreza de modos que, maravilhado, Takafuji amou-a loucamente até de manhã. Aos primeiros alvores da madrugada, levantou-se. Tenho de me ir embora, disse-lhe, mas fica com isto, para te lembrares de mim, e deu-lhe a espada que levava à cintura. Quando os teus pais, que ignoram o nosso amor, quiserem casar-te, não aceites ser mulher de outro!, acrescentou ele, deixando-a com grande mágoa.
Ainda não tinha percorrido a cavalo mais de quatro ou cinco chô (cerca de quinhentos metros), quando os do seu séquito surgiram de todos os lados, intrigados por o encontrarem ali e, ao mesmo tempo, aliviados. Regressaram juntos à capital. O Guarda seu pai, que sabia que o jovem senhor partira na véspera para a caça e não o vira chegar, passara a noite a pensar no que lhe poderia ter acontecido. Louco de angústia, aos primeiros alvores da madrugada, enviara alguns homens à sua procura, e agora via-o regressar com eles! Deu largas à sua alegria, mas depois repreendeu o filho: Esse entusiasmo pela falcoaria é coisa da tua idade. Quando eu era novo, também gostava de andar pelo mato com os meus falcões, e o meu falecido pai deixava. Já fiz o que tu fizeste, mas, depois do que acaba de acontecer, fico muito inquieto. A partir de hoje, enquanto não tiveres juízo, proíbo-te de ir à caça! E foi assim que o rapaz teve de desistir da caça. Os escudeiros que o tinham acompanhado naquele dia não tinham visto a casa. Nenhum deles a conhecia. O palafreneiro era o único que sabia onde ela ficava, mas tinha sido despedido e voltara para o campo. Ninguém podia ajudá-lo e o jovem senhor morria de saudades da rapariga e não tinha meio de lhe fazer chegar uma mensagem. Os dias e os meses iam passando e o seu amor ia aumentando; estava inconsolável. E assim passaram quatro ou cinco anos.
Um dia, o Guarda, seu pai, morreu ainda jovem. Takafuji ficou a cargo de uns nobres que eram seus tios e foi viver com eles. Um desses tios, o ministro da Direita Yoshifusa, reparou no seu belo porte e na nobreza do seu carácter, percebeu que ele viria a ser um homem de grande valor e tratou-o com mil e um cuidados; todavia, após a morte do pai, o rapaz andava sempre melancólico e só pensava na tal mulher, e o seu coração trasbordava de amor por ela. Passou mais um ano, e ele continuava a não querer casar-se. Ora, um dia, ouviu dizer que o escudeiro que o tinha acompanhado regressara do campo. Mandou-o chamar e, como se fosse pedir-lhe para o pentear, fez-lhe sinal para se aproximar: Lembras-te daquela casa onde nos abrigámos da chuva, naquele dia em que fomos à caça?, perguntou-lhe. Claro que me lembro!, respondeu o escudeiro, para grande alegria do jovem senhor. Pois bem, gostava de 1á ir hoje. Diremos que vamos à caça. Mas não te esqueças do que eu quero!, disse-lhe ele. Levou com eles um fiel escudeiro que lhe levava a espada, e cavalgaram em direcção aos cumes do monte Amida. Quando chegaram ao local, estava o Sol a pôr-se». ». In Pascal Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe Picquier, Arles, 1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos, tradução de Maria Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN 972-795-043-4.

Cortesia de Cotovia/JDACT