domingo, 23 de março de 2014

Ao Encontro de Espinosa. Leituras. António Damásio. «… o que Ricardo devia ter dito, com as devidas desculpas para Shakespeare, é o seguinte: Ó, como esta forma exterior de lamentos lança uma sombra intolerável de pesar sobre o silêncio da minha alma torturada»

Cortesia de wikipedia

Os Apetites e as Emoções
Shakespeare já o tinha dito
«(…) Na parte final de Ricardo II, coma coroa já perdida e a prisão cada vez mais perto, Ricardo explica a Bolingbroke a distinção entre emoção e sentimento. Ricardo pede que lhe tragam um espelho e confronta no seu rosto o espectáculo do declínio. Declara então que a forma exterior de lamentos que o seu rosto exprime nada mais é do que as sombras do pesar que ninguém vê, um pesar que se avoluma em silêncio na alma torturada. O seu pesar, diz ele, é inteiramente interior. Em apenas quatro versos, Shakespeare anuncia que o processo unificado e aparentemente singular dos afectos, a que geralmente nos referimos indiscriminadamente como emoções ou sentimentos, pode ser analisado em partes. A elucidação dos sentimentos requer esta distinção. É verdade que o uso habitual da palavra emoção tende a incluir a noção de sentimento. Mas, na tentativa de compreender a cadeia complexa de acontecimentos que começa na emoção e termina no sentimento, separar a parte do processo que se torna pública da parte do processo que sempre se mantém privada ajuda a clarificar as ideias. À parte pública do processo chamo emoção e à parte privada sentimento. Peço ao leitor que me acompanhe nesta escolha de palavras e conceitos, porque esta escolha nos vai permitir descobrir qualquer coisa de novo na biologia que respeita a esses fenómenos. No contexto deste livro, as emoções são acções ou movimentos, muitos deles públicos, que ocorrem no rosto, na voz ou em comportamentos específicos. Alguns comportamentos da emoção não são perceptíveis a olho nu mas podem tornar-se visíveis com sondas científicas modernas, tais como a determinação de níveis hormonais sanguíneos ou de padrões de ondas electrofisiológicas. Os sentimentos, pelo contrário, são necessariamente invisíveis para o público, tal como é o caso com todas as outras imagens mentais, escondidas de quem quer que seja excepto do seu devido proprietário, a propriedade mais privada do organismo em cujo cérebro ocorrem.
As emoções desenrolam-se no teatro do corpo. Os sentimentos desenrolam-se no teatro da mente. Tal como veremos, as emoções e as várias reacções que as constituem fazem parte dos mecanismos básicos da regulação da vida. Os sentimentos também contribuem para a regulação da vida mas a um nível mais alto. As emoções e as reacções com elas relacionadas parecem preceder os sentimentos na história da vida e constituir o alicerce dos sentimentos. Os sentimentos, por outro lado, constituem o pano de fundo da mente. As emoções e os sentimentos estão tão intimamente relacionados ao longo de um processo contínuo que tendemos a vê-los, compreensivelmente, como uma entidade simples. No entanto, é possível entrever sectores diferentes nesse processo contínuo e, com a ajuda do microscópio da neurociência cognitiva, é possível e legítimo dissociar esses sectores. Com a ajuda dos métodos científicos modernos, um observador pode examinar objectivamente os comportamentos que perfazem uma emoção e, desse modo, estudar o prelúdio dos processos do sentimento. Transformar emoção e sentimento em objectos separados de pesquisa, ajuda-nos a descobrir como se sente.

As Emoções Precedem os Sentimentos
Ao discutir a precedência da emoção sobre o sentimento, devo começar por chamar a atenção para qualquer coisa que Shakespeare deixou ambígua nos seus versos para Ricardo. A ambiguidade tem a ver com a palavra sombra e com a possibilidade de que o sentimento pudesse surgir antes da respectiva emoção, uma possibilidade que de facto não se verifica. Os lamentos exteriores são uma sombra do pesar invisível, diz Ricardo, uma espécie de reflexo, no espelho, do objecto principal, o sentimento de pesar, tal como o rosto de Ricardo, no espelho, reflecte Ricardo, o objecto principal da peça. Esta ambiguidade é fácil de compreender.
Gostamos de acreditar que aquilo que está escondido é a origem daquilo que exprimimos, e claro que acreditamos que, no que diz respeito à mente, o sentimento é aquilo que conta. Eis a substância, diz Ricardo quando fala do seu pesar oculto, e concordamos com ele. Mas principal não significa que veio primeiro e, ainda menos, causativo. A grande importância dos sentimentos não deixa entrever facilmente a forma como eles surgem, e pode levar à falsa ideia de que os sentimentos ocorrem primeiro e, subsequentemente, se exprimem em emoções. Este ponto de vista é incorrecto e é uma das causas do atraso no estudo neurobiológico dos sentimentos. Na realidade, são os sentimentos que constituem sombras das manifestações emocionais. Com efeito, o que Ricardo devia ter dito, com as devidas desculpas para Shakespeare, é o seguinte: Ó, como esta forma exterior de lamentos lança uma sombra intolerável de pesar sobre o silêncio da minha alma torturada». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT