sexta-feira, 28 de março de 2014

Camões. A Infanta D. Maria. De Volta de Ceuta. José Maria Rodrigues. «Se te apartas, por não ouvir meu rogo, onde estiveres te hei de importunar; posto que vás por agua, ferro ou fogo, comtigo em toda a parte me has de achar; que o fogo em que ardo e a agua em que me afogo, emquanto eu vivo fôr, hão de durar»

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De Volta de Ceuta
«(…) Um dos artigos fundamentais do programa de vida nova, traçado em Ceuta por Camões, era, segundo vimos, a sua reconciliação com aquela

Cuja lembrança e cujo claro gesto

lhe reapareciam agora na ulcerada alma, como que a encobrir o incomensurável vácuo que nela se fizera. Foram, porém, baldados todos os esforços empregados por parte do poeta para realizar este intento. Não lhe valeram satisfações, rogos nem queixumes, expressos com toda a eloquência em admiráveis versos:

Caminha o dia todo o caminhante
E, emfim, lhe chega a noite em que descansa;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhã feliz bonança;
Recobra o fruto fértil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cansa:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.

De ouvir meu dano, as rosas matutinas
Condoídas se cerram, se emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as cores finas
Perdem o cravo, o lirio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, se entristecem.
Deixam seu canto Progne e Philomena,
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.

Responde o monte concavo a meus ais,
E tu, como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indómitos, feros animais.
Sem humano sentir, mostram sentido;
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido.
Por muito que te chame, não respondes,
E, quanto mais te busco, mais te escondes.

Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado,
Alli donde mil vezes me mostravas
Que era o pastor de ti mais desejado.
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.

Este lugar, de ti desamparado,
Em cujas sombras frias já folgaste.
Agora triste, escuro, é já tornado,
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.
Torna, meu claro sol, torna meu bem;
Qual é o Josué que te detém?

Despois que deste valle te apartaste.
Não pára já algum gado, com secura;
Secou-se o campo, desque lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Secou-se a fonte donde já te olhaste,
Quando menos, que agora, áspera e dura.
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto, e leite aos cabritos.

Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz escura me parece;
Este ribeiro, quando a dor me obriga.
Com meu chorar por ti contino crece;
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti já não florece.
Cegos estão meus olhos, nada vem.
Porque não podem ver seu claro bem.

……………………………………………

Torna, pois, já, pastora, ao nosso prado.
Se restituir-lhe queres a alegria;
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado;
Farás a noite escura claro dia;
E Alegra já esta vida magoada.
Em que só tua ausência é parca irada.

Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, que, escondido.
Deixa um certo temor á mortal gente,
Causado de ver o orbe escurecido;
E quando torna a vir, claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi é para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausência noite escura.

Mas tu, 'squecida já do bem passado
E do primeiro amor que me mostraste,
Teu coração de mi tens apartado,
Não menos que do valle te apartaste.
Não te quero eu a ti mais que a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu erro viste ou desvario,
Que pôde merecer-te um tal desvio?

……………………………………..

Se te apartas, por não ouvir meu rogo,
Onde estiveres te hei de importunar;
Posto que vás por agua, ferro ou fogo,
Comtigo em toda a parte me has de achar;
Que o fogo em que ardo e a agua em que me afogo,
Emquanto eu vivo fôr, hão de durar.
Pois o nó que me enlaça é de tal sorte.
Que não se ha de soltar em vida ou morte.

Neste meu coração sempre estarás;
Emquanto a alma estiver com elle unida,
Também o meu esprito possuirás.
Despois que a alma do corpo fôr partida.
Por mais e mais que faças, não farás
Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida.
Impossivel será que eternamente
Ausente estes de mi, estando ausente.
(Apesar de ausente, estarás sempre presente)

Foi improfícuo o recurso a pessoas de elevada posição social, que, condoídas do pobre sonhador, despenhado da altura das suas ilusões, e receosas, por certo, de uma funesta recaída, se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados».

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/Universidade de Coimbra/JDACT